A
EQUIPARAÇÃO DA INJÚRIA RACIAL AO RACISMO
Saymon
de Oliveira Justo 1º Direito/Noturno
A ADI 6987 (Ação Direta de Inconstitucionalidade) impetrada
pelo Partido Cidadania trata da equiparação da chamada “injúria racial” ao
crime de “racismo”. Argumenta o referido Partido que a pretensa diferença
ontológica entre injúria racial e racismo, além de não se sustentar a luz de
pesquisa empírica, “menoscaba e torna
ineficaz o repúdio constitucional ao racismo, por não considerar imprescritível
e inafiançável uma das suas principais formas de
manifestação no mundo contemporâneo (...)”. Continuando a argumentação, o Cidadania traz
o entendimento da Corte Interamericana de Direitos Humanos, no sentido de que “ofensa
ao indivíduo em sua honra subjetiva por elemento racial constitui uma das
principais ferramentas do racismo estrutural (...). Nesse sentido, o
entendimento da injúria racial como prática diferente do racismo só contribui
ainda mais para a impunidade.
Os conflitos expressos no litígio são conflitos seculares,
advindos de mais de três séculos de escravidão, que opõe setores conservadores,
geralmente brancos, remanescentes de uma cultura escravocrata, que atualmente
se expressa de forma velada ou quando aberta sob a justificativa da “liberdade
de expressão”, e pretos, pardos, vítimas diárias das várias faces que o racismo
assume em nosso país.
Trazendo o conceito de “espaço dos possíveis” do
sociólogo Pierre Bourdieu, podemos compreender que a equiparação da chamada
injúria racial ao crime de racismo está em pleno acordo com as possibilidades
tanto da Constituição Federal quando do Código Penal brasileiro. O Artigo 5º, inciso XLII da Constituição
Federal estabelece que “a pratica do
racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito a pena de
reclusão, nos termos da lei;”. Já a lei infraconstitucional, no caso o
Código Penal, estabelece no caput do Artigo 139 que “difamar alguém, imputando-lhe fato ofensivo à sua reputação” está
sujeito a pena de detenção de três meses à um ano e multa. Continua o mesmo
artigo, em seu inciso 3º, que “se a injúria consiste na utilização de
elementos referentes á raça, cor, etnia, religião (...)”, a pena consiste
em reclusão de um a três anos e multa. Em resumo, considerando a Constituição
Federal em conjunto com a lei infraconstitucional de natureza mais específica,
no caso o Código Penal, parece perfeitamente plausível e dentro do espaço dos
possíveis a equiparação da injúria racial ao crime de racismo.
Tal equiparação corresponde a uma racionalização da norma, uma vez que tal interpretação argumenta de
forma racional que não existem diferenças fundamentais ontológicas e nem
fáticas entre uma prática e outra, sendo ambas consideradas expressões
diferentes do mesmo fenômeno do racismo. Nesse sentido, a interpretação da
norma pode ser considerada sob os conceitos de universalização e neutralização, uma vez que é deduzida de uma
operação lógica das normas do ordenamento jurídico e expressa nos termos
impessoais dessas mesmas normas. Ainda de acordo com Pierre Bourdieu, podemos
considerar a equiparação da injúria racial ao racismo como uma historicização
da norma, uma vez que amplos setores da sociedade já não apenas não
toleram como repudiam as várias faces que assume o racismo. Nesse sentido, a
equiparação de que trata o debate corresponde tão somente ao anseio de seres
humanos vítimas de racismo e de uma ampla massa popular que repudia essas
práticas.
Quanto a pretensas alegações de ativismo judicial,
entendemos que elas não se sustentam no referido caso, uma vez que o judiciário
foi provocado por ente legítimo definido no texto constitucional (partido
político com representação parlamentar) e de acordo com a mesma Constituição
Federal, cabe ao judiciário a interpretação das normas constitucionais.
Em relação ao sujeito tutelado, no caso são todas as pessoas diariamente
vitimizadas pelas diferentes formas que assume o racismo. Como muitas vezes as
autoridades são omissas ao caracterizar certas atitudes como racistas e
consequentemente não punem suas práticas de acordo com a lei, como diz Antoine
Garapon, o sujeito apartado de toda proteção, recorre ao judiciário como único
amparo possível frente aos seus direitos lesados. Essa busca por justiça e o amparo
do Direito, longe de constituir uma ameaça
a democracia, constitui um aprofundamento da mesma, uma vez que opera para
que a igualdade estabelecida no texto da lei se torne cada vez mais efetiva,
mesmo que pela via punitiva.
Aliás, se pessoas, partidos e organizações da sociedade
civil mobilizam o Direito em prol dessas pautas, o fazem tão somente em razão
de não encontrarem outro amparo para a proteção de seus direitos
constitucionais mais básicos. Se a via judicial não muda a consciência das
pessoas de imediato e impõe o direito pelo receio da penalidade, isso já
constitui um ganho para quem é diariamente vitimizado por práticas racistas.
Entretanto, a questão não se encerra na punição, pois quando o Direito se
coloca em movimento novos debates são levantados, novos mecanismos de combate
ao racismo são pensados e construídos e a longo prazo, inclusive, a consciência
social vai se modificando.
Por fim, trazemos para o debate as reflexões do escritor
camaronês Achille Mbembe, que nos traz o conceito de alterocídio, no caso
tratar o “outro” como ameaçador, como não semelhante, como aquele que precisa
ser apartado e controlado. Nesse sentido, o “outro”, no caso o negro, muitas
vezes é desumanizado pelo racismo, desumanização essa que restringe seu
espaço social, vedando seu acesso a certos ambientes, universidades,
aeroportos, bairros e em casos extremos, porém, não incomuns, esse alterocídio
e desumanização levam a agressões físicas e até assassinatos. Nesse contexto e
a partir das reflexões de Mbembe, a equiparação da injúria racial ao racismo,
não é apenas um desdobramento lógico de nossa legislação, mas um verdadeiro
imperativo civilizacional.
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