No dia 16 de agosto de 2020, uma menina
de 10 anos foi a um hospital em Recife, Pernambuco para realizar um aborto
garantido por lei, uma vez que essa criança foi vítima de estupro e não possuía
estruturas físicas e psicológicas para prosseguir com a gravidez. Ademais, além
de ter enfrentado uma viagem até a casa de saúde, pois os hospitais no Espírito
Santo- lugar em que a garota reside- de maneira totalmente inadequada se
recusaram a realizar o procedimento. Ainda, teve que se deparar com um protesto
em frente ao setor de saúde em que grupos religiosos se reuniram com objetivo
de impedir que a interrupção da gravidez fosse realizada, utilizando de
agressões verbais contra a criança e repúdio a equipe médica que fez o
processo.
Em primeira análise, o caso abordado e essa reação relatada acima não é
uma exceção de situação na sociedade contemporânea, e principalmente da
realidade brasileira. Isso por que, o aborto foge do tipo ideal como afirma Max
Weber, ou seja, o referencial construído historicamente pela influência da
Igreja Católica na construção do funcionamento organizacional da sociedade e a
cultura conservadora como ideia de valor no Brasil, vai contra os princípios de
liberdade da mulher enquanto indivíduo capaz de tomar decisões sobre seu
próprio corpo, ainda que essa pessoa seja uma criança inserida em grave
contexto de vulnerabilidade marcado por abuso sexual e psicológico.
Assim, a condução da vida é moldada por fundamentos com base em
instituições materiais como já falado, mas também imateriais, como a moral e os
valores da família tradicional brasileira, e isso se comprova na sociedade
contemporânea, pelo próprio fato da criminalização do aborto no Brasil, ser
somente liberado em casos particulares, mesmo que isso custe à vida e o
psicológico de milhares de mulheres, em sua maioria negras e periféricas. Para
tanto, é essencial destacar que além desse panorama, apesar de algumas mulheres
encaixarem-se na especificidade em que é permitida a interrupção da gravidez,
essas não possuem a efetivação prática de seus direitos, como por exemplo, essa
negação dos hospitais em realizar aquilo que é garantido na teoria pela lei,
limitando o acesso dessas pessoas e os recursos, além de não serem acolhidas
pela sociedade.
A partir de tal ótica, segundo Weber essa condução da vida implica na
dominação presente nas relações sociais, não somente nas diferenças de classes,
mas em todas as esferas da sociedade. Nesse caso, a legitimidade do próprio
governo brasileiro que desde sua eleição reproduz condutas contra a legalização
do aborto, e posturas "pró-feto" junto à valorização da família
heteronormativa é um exemplo de domínio as minorias sociais. Entretanto, é
necessário afirmar que isso afeta em maior parcela mulheres negras e periféricas
que estão em inseridas em condições de vulnerabilidade, resultando em uma
misoginia ocasionada pela tentativa de aborto em clínicas que não oferecem
segurança adequada para realizar o procedimento, enquanto mulheres brancas com
poder aquisitivo conseguem ter acesso a remédios abortivos ou cruzam a
fronteira no Uruguai, onde é permitido o aborto.
Ademais, relacionando com os estudos de Max Weber e com a atuação do
Direito nesse cenário, é importante salientar acerca da racionalidade formal e
material na perspectiva do aborto e como essa questão se desenvolve em âmbito
jurídico. Com base nesse paradigma, o sistema judicial brasileiro por ser
baseado na racionalidade formal e por ter tido suas normas e Constituição
desenvolvido por meio de um direito voltado para o "tipo ideal" não
leva em consideração a necessidade de particularidades que atendam as minorias
sociais, e, sobretudo não possui uma linguagem que alcance todos os indivíduos,
sendo forma de grupos hegemônicos continuarem a dominar outros grupos. Para
tanto, o que comprova isso é o fato do sufrágio feminino no Brasil ter sido
conquistado somente em 1930, ou seja, essa exclusão de participação na própria
politica representa essa dominação, e uma vez que os indivíduos não conseguem
ter acesso ao dialeto do sistema jurídico pela linguagem rebuscada, e a própria
falta de espaço e representatividade, a comunicação torna-se uma forma de
colocar-se acima de outros.
Portanto, é necessária uma modificação no modo em que é conduzido o
sistema judicial para que a própria linguagem jurídica não seja um impasse que
contribuía para uma dominação que causa a desigualdade e prega pela
meritocracia. Logo, é tão fundamental essa transformação para que casos como
esse de uma criança de 10 anos e mulheres não tenham seus corpos controlados
por falta de acesso e amparo jurídico, ainda frisando o acontecimento da menina
que sofreu repúdio de conservadores, é ainda maior a necessidade de assistência
e combate para que a cultura do estupro construída desde os processos de miscigenação
no Brasil deixe de se perpetuar na contemporaneidade.
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