The laws of man don't apply when
blood gets in a woman's eye – The Black Keys
Um mero verso entoado pela banda The Black Keys
na música Ten Cent Pistols contrasta
com a realidade vivida pela mulher. Em uma tradução literal, o verso significa
que as leis dos homens não se aplicam
quando o sangue entra nos olhos de uma mulher. Metaforicamente, o sangue
nos olhos das mulheres nada mais é do que toda a opressão vivida diariamente e
positivada por leis que não foram elaboradas por elas e para elas. Verifica-se,
portanto, que as leis dos homens aplicam-se também quando o sangue entra nos
olhos da mulher. Uma
sociedade ainda patriarcal, que ao tratar do aborto da gestação anencéfala
tratou apenas de uma questão limitada dentro do espaço dos possíveis de Bourdieu, que parece ser restrita à vontade
de uma minoria que encontra-se no poder. No entanto, um primeiro passo foi
tomado com a ADPF 54, em que foi dada a constitucionalidade quanto a permissão
do aborto para fetos anencéfalos.
Segundo
Bourdieu, o direito não deve ser instrumento da classe dominante nem autônomo
diante das mudanças sociais. O direito deve apoiar-se sob os moldes da
sociedade, adaptando-se a cada mudança e a cada reivindicação social. Isso vai
de encontro com a ADPF 54 em que foi aprovado o aborto de feto anencéfalo,
decisão esta que mostra uma certa dinamicidade do direito, mesmo sendo mínima e
lenta.
A
anencefalia apresenta-se no ser humano pela ausência do cerebelo e do cérebro,
dessa forma, assim como verificado no documento da ADPF 54, essa má-formação
pode causar a morte do feto ainda dentro do útero, sendo que são reduzidas as
chances de sobrevivência na vida extra-uterina, mesmo havendo (poucos) casos em
que o bebê anencéfalo viva por alguns anos. Além disso, a gestação pode
prejudicar tanto a saúde física, quanto a saúde psicológica da mulher, causando
um sofrimento que sempre será presente na vida dela. Como a medicina ainda não
conseguiu sanar os males provocados pela anencefalia, cabe ao direito intervir
e amenizar um sofrimento e oferecer suporte a uma necessidade – da mulher
principalmente - que já deveria ser atendida, que é o aborto. A partir dessa
constatação, associa-se a defesa de Bourdieu em O Poder Simbólico a um direito que se liga à outras forças externas, ou seja, o direito é
como um campo aberto que deve ser influenciado por outros campos. Com isso,
Bourdieu inclusive critica a autonomia jurídica que tanto é defendida por
Kelsen. Assim, na visão de
Bourdieu, o direito vigente em um país deve acompanhar as descobertas e
evoluções medicinais, a fim de propiciar melhorias no âmbito jurídico para a
sociedade. No entanto, sob a égide da laicidade do Estado, a
religiosidade não deve interferir nesse campo, sendo o direito dirigido pelas
forças sociais. Além disso, o direito não deve ser instrumento de controle das classes
dominantes, pois não deve ser excluída a estrutura simbólica da sociedade,
embora que ainda a decisão da ADPF 54 tenha sido feita pela elite intelectual
do Brasil. Dessa forma, a luta por conquistas dentro do campo jurídico delimita
a esfera de atuação do direito dentro do espaço
dos possíveis. Ademais, adentrando-se nesse espaço, a decisão pelo aborto
da gestação de feto anencéfalo demonstra um pequeno alargamento dessa área,
pois simboliza uma decisão que influencia diretamente na vida social
brasileira, especialmente a da mulher.
Desse
modo, como muito bem evidenciado por Bourdieu, o direito não pode ser
representado por um dever-ser em uma
sociedade que é desvinculada de seu campo jurídico, mas o direito deve
constituir-se em um fato diante da
realidade, sendo um reflexo da sociedade. O corpo da mulher não deve ser uma
jaula que nutre um ser que não existirá e que apenas irá feri-la; a anencefalia
não deve ser tratada como um fardo, como uma penalidade para a gestante. É preciso
muito ainda para expandir esse espaço dos
possíveis, para principalmente haver um direito universalizante, em que a
opção pelo aborto do feto anencéfalo – e o aborto de modo geral – não precise
da ação do STF.
Lara
Costa Andrade
1º
ano de Direito (Diurno)
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