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sábado, 5 de dezembro de 2015

Até que ponto o Direito é intocável?

          A ADPF 54 foi requerida pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS) que queria que fosse considerada incompatível com a Constituição a interpretação de que o aborto de fetos anencéfalos constitui crime segundo os artigos 124, 126 e 128, incisos I e II do Código Penal. Para tanto, foram utilizados argumentos com base racional-técnica de acordo com o avanço da medicina e o preceito da laicidade do Estado brasileiro, para que as decisões jurídicas não fiquem limitadas pela religião e sua moral.
          Segundo Bourdieu, o Direito constitui um campo onde normatiza-se as condutas das pessoas e que conta com relativa autonomia, onde  encontramos valores, códigos linguísticos próprios, hábitos, recursos e capital simbólico. No caso do aborto de anencéfalos, há todos esses elementos integrando a lógica jurídica, desde internos ao campo do Direito, como o formalismo da tomada de decisões, as linguagens e hábitos próprios para o debate e os recursos institucionais como o STF e a ADPF, além de seu próprio capital simbólico. Mas também encontramos elementos externos, como um jogo de valores morais, religiosos e ideológicos, recursos advindos de movimentos sociais e a presença do capital simbólico das instituições religiosas.
          Para Bourdieu, são esses elementos externos que colocam a pauta para a decisão dentro do campo do Direito e, sendo esses elementos advindos de conflitos sociais, ele explica que não podemos considerar o Direito como um campo de autonomia absoluta, como defendia Kelsen, mas sim um campo que é afetado pelas pressões sociais, como podemos perceber no caso analisado, pela conflito entre grupos com ideologias feministas e mais liberais em relação à conduta do aborto e grupos conservadores com moral religiosa que defendem que o aborto de anencéfalos é um crime à vida.
          Percebemos, portanto, de acordo com esse conflito, que o "espaço dos possíveis" do Direito ainda não se encontra tão abrangente para considerar o aborto em geral como uma pauta possível, porém, com o desenvolvimento técnico-científico cada vez mais rápido perante a velocidade das decisões jurídicas e com a participação de movimentos sociais, o aborto de fetos anencéfalos, considerados com probabilidade de quase que absolutamente zero de chance de sobreviverem por mais que minutos, dias ou semanas, caso consigam chegar a nascer, se tornou um tema com alcance às demandas de certos ramos sociais que defendem que seja melhor o aborto neste caso para evitarem problemas de saúde à mãe provenientes da gestação e traumas emocionais, para a família, vindos do resultado provavelmente possível que se pode chegar pela persistência na gestação de fetos anencéfalos. Em outras palavras, temos a moral e a razão como delimitação do "espaço dos possíveis".
          O Direito deve evitar o instrumentalismo, ou seja, a ideia de que o Direito está a serviço de classes dominantes, pois o que justifica que estas classes sejam menos desfavorecidas e seus valores mais valorizados, no âmbito jurídico, provém de ethos compartilhados, por isso, o aborto em sua totalidade não está no "espaço dos possíveis", pois há uma grande presença de valores conservadores presentes no legislativo, que advém da semelhança moral dos deputados e senadores sendo muito deles, provenientes e defensores da moral religiosa. Eis mais um dos motivos que negam a independência do campo jurídico: os indivíduos envolvidos nele são provenientes do campo externo e possuem valores externos a ele.
          Analisando o caso presente, da ADPF 54, fica claro que Bourdieu conseguiu analisar a abrangência e as características do campo jurídico no cenário contemporâneo. O Direito não é independente e autônomo, pois fatores externos, como o social, colocam as pautas dentro de seu debate, pressionando-o. O Direito não é apenas um instrumento dos dominantes, pois nesse caso do aborto de anencéfalos, a ADPF foi considerada procedente, ou seja, venceu a moralidade religiosa de nossos legisladores e da maioria conservadora brasileira. O Direito não possui toda a sua formalidade e imunidade frente ao social, o Direito dita sua lógica e o seu tempo, mas ele não é intocável pelas demandas sociais.
 
Alexandre Roberto do Nascimento Júnior
Sociologia do Direito
1º ano Direito - Diurno

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