As práticas e os discursos jurídicos são,
com efeito, produto do funcionamento de um campo cuja lógica específica está
duplamente determinada: por um lado, pelas relações de força específicas que
lhe conferem a sua estrutura e que orientam as lutas de concorrência ou, mais
precisamente, os conflitos de competência que nele têm lugar e, por outro lado,
pela lógica interna das obras jurídicas que delimitam em cada momento o espaço
dos possíveis e, deste modo, o universo das soluções propriamente jurídicas. (BOURDIEU, Pierre. A força
do direito: elementos para uma sociologia do campo jurídico. O Poder
Simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989. p. 211).
O Direito é
intrinsicamente ligado ao processo histórico de mudanças, uma vez que em cada
momento revela-se como um estado de forças diferentes que têm necessidade de se
adaptar à realidade, condicionando novas condutas e agindo conforme o chamado
“espaço dos possíveis”.
Mas o que seria
o “espaço dos possíveis” e de que forma tal espaço está relacionado com a
prática e o discurso jurídico? Tal “espaço” tratado por Bourdieu diz respeito
ao campo passível de abordagem pelo Direito, ou seja, o campo jurídico
influencia e aborda outros campos científicos, que vão desde a economia até a
medicina. Tal abordagem ao mesmo tempo que expande o campo jurídico
salvaguardando uma relativa independência, também de certa forma o deixa
dependente, pois em muitos casos é necessária a intervenção externa de outros
campos para que o próprio direito possa agir (por exemplo, a espera por um
relatório da perícia para averiguar se o réu estava ou não portando a arma do
crime).
Exemplificando
tal relação do Direito com o chamado “espaço dos possíveis” e também com o
processo histórico de mudanças, pode-se citar a ADPF 54/DF. Nessa Arguição de
Descumprimento de Preceito Fundamental, a Confederação Nacional dos
Trabalhadores na Saúde formalizou um pedido no qual demonstra ser improcedente
a criminalização por via de ação penal pública de profissionais da saúde que
haviam atuado em processos de antecipação terapêutica do parto –
especificamente a interrupção da gravidez de feto anencéfalo – contestando para
tal fim, os artigos 124, 126 e 128, incisos I e II do Código Penal, que
criminalizam a ação de provocar o aborto em si ou consentir que outrem lhe
provoque.
Mas onde está a
relação que envolve o Direito? No caso proposto pela ADPF, há a chamada
historicização da norma, ou seja, uma questão que anteriormente não seria
discutida devido à indisponibilidade de tecnologia para avaliar as condições de
vida do feto em questão, em 2004 já poderia ser debatida e adaptada, tanto pelo
avanço do campo médico quanto pela transformação da própria receptividade da
sociedade, ou seja, embora a fonte seja a mesma (a norma), a hermenêutica muda
e possibilidades inéditas de interpretação passam a ser conferidas ao Direito.
Quanto aos
sentidos de interpretação da norma, Bourdieu os vincula à dinâmica da “luta
simbólica” no campo jurídico, de acordo com posições ocupadas em especial por
duas categorias de “intérpretes”. Os chamados “doutrinadores”, que são os
encarregados da elaboração puramente teórica e os “operadores”, responsáveis
pela atividade prática, associada ao trabalho dos magistrados, que através da
jurisprudência realizam atos e também contribuem para a construção jurídica.
O juiz, portanto,
opera a historicização da norma, pois ao invés de simplesmente executar a lei,
dispõe de certa autonomia para adaptá-la. Logo, o veredicto é o produto dessa
“luta simbólica”, vinculado muito mais às atitudes dos agentes do campo que às
normas puras. Sua enunciação, no entanto, embora possa significar novas
criações, está ainda inscrita no âmbito de determinadas estruturas e produz
efeito social, está atrelada também aos interesses sociais dos agentes formalizadores.
Por produzir efeito social e
estar atrelado a determinadas estruturas, o texto jurídico apresentado tanto no
veredicto, quanto na interpretação normativa, representa além da “luta
simbólica” entre “doutrinadores” e “intérpretes”, uma maneira de apropriação da
força simbólica que nele se encontra em estado potencial.
O Ethos compartilhado explica
a expressão dos valores dominantes no âmbito jurídico, Bourdieu explica tal
fenômeno expondo que a proximidade de interesses está ligada a formações familiares
e escolares semelhantes, o que favorece que a visão de mundo dos aplicadores do
Direito seja muito próxima. Daí, para o autor, há a pouca probabilidade de desfavorecimento
dos dominantes, pois são eles quem majoritariamente aplicam o direito.
A moral existente do nosso
tempo, embora possibilite uma discussão sobre aborto de anencéfalos, não
permite ir muito além na discussão do aborto, por exemplo, pois a sociedade
brasileira, no caso da ADPF 54/DF, ainda possui muita influência da religião,
como demonstrado na contraposição do preâmbulo e do texto da Constituição, esse
declarando o Brasil como laico.
Além da presença desse ethos
compartilhado – o da moral cristã – a ADPF também traz outra questão tratada
por Bourdieu, a do efeito simbólico, traduzido na Arguição como a reverência
feita pelas pessoas aos ministros, por acharem que os mesmos, por serem
aplicadores do Direito e ministros, são mais capazes. Tal efeito simbólico
apenas reforça que há sempre uma hierarquia presente, seja no Direito, seja na
sociedade, e que a mesma é responsável por atribuir uma espécie de contorno às
discussões, afinal, a opinião mais valiosa pertencerá aos que estiverem mais
acima na hierarquia, quase remetendo a hierarquia de normas proposta por
Kelsen. O direito tem um poder simbólico, logo, mesmo que os movimentos sociais
levantem questões, a última palavra é a do direito (como no caso da ADPF).
Tal fenômeno apenas reforça a
necessidade da formação de juristas com senso crítico, que doutrinem e apliquem
o Direito de forma consonante à Constituição mas ao mesmo tempo resguardando o
princípio da dignidade da pessoa humana, seja ele aplicado a uma mulher grávida
de feto anencéfalo (o qual não tem condições de vida fora do meio intrauterino)
impossibilitada de interromper sua gestação; a uma transsexual à procura de sua
cirurgia de mudança de sexo, seguida da mudança de seu nome civil; a
homossexuais impossibilitados de contrair matrimônio; a cotas universitárias
para negros ou para o direito de moradia de famílias marginalizadas e de
baixíssima-renda. Afinal, se o direito perpetua os valores de quem o aplica e
quem o faz, é necessário que essas pessoas possuam senso crítico e estejam atualizadas
às mudanças e necessidades de toda a sociedade, afim de que o direito não se
torne uma simples expressão perpetuadora de valores conservadores e
falso-moralistas.
Mariana Ferreira Figueiredo
1º ano de Direito (diurno)
Sociologia do Direito
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