O julgado do STF sobre a
criminalização da homofobia está entre os mais polêmicos dos últimos anos, pois
além de ter promovido uma analogia com o crime de racismo (âmbito do direito
penal), trouxe um reconhecimento histórico para a causa LGBT, pois tal criminalização
é uma das demandas mais antigas dos militantes desse grupo. Esse julgado causou
um abalo nos pilares conservadores da nossa sociedade judaico-cristã e foi
combatida por diversos grupos religiosos e políticos. Dito isso, passemos para
uma análise um pouco mais profunda sobre a importância dessa decisão e as
possíveis críticas endereçadas a ela.
O filme “Madame Satã”, umas das mais importantes obras do
cinema nacional, retrata a vida de um negro homossexual e pobre, morador da
região da Lapa no Rio de Janeiro. Com o avanço do filme, ficam evidentes as
diversas formas de opressão que o protagonista enfrenta durante a sua vida.
Entre elas destacam-se o “apartheid”, notado na proibição da entrada em um
evento, a exploração do trabalho, a homofobia latente e a perseguição policial.
Esta abordagem promovida pelo filme nos possibilita entender as enormes
dificuldades que a população LGBT enfrenta até hoje na nossa sociedade
brasileira como, por exemplo, a expectativa de vida das pessoas transexuais ser
de apenas 35 anos e a taxa de mortalidade de homossexuais ser maior aqui do que
nos 13 países onde vigora pena de morte para LGBT´s. O ministro Ricardo
Lewandowski ressaltou em seu voto a dívida que o sistema jurídico, político e
criminal têm para com os grupos de travestis oprimidos. De acordo com um estudo
de Ana Braga e Victor Serras, “A travesti tem sua palavra silenciada e ignorada
em detrimento do peso dos testemunhos policiais e da palavra da vítima no
processo de conhecimento do juízo”. A análise desses dados mostra a importância
e urgência da proteção legal dessa população marginalizada.
Ao criminalizar a homofobia, o STF forneceu o que Michael
Mccan chama de “fichas de negociação”, possibilitando que os grupos homo e
transexuais mobilizem o direito com uma maior perspectiva de vencerem os
litígios nos tribunais e terem os seus direitos efetivamente reconhecidos.
Ademais, a suprema corte brasileira demonstrou o seu pioneirismo para uma
alternância de paradigma, sendo responsável pelo início da construção de uma
cultura anti - homofobia. Nas palavras de Mccan: “As construções jurídicas dos
tribunais são constitutivas de vida cultural”, portanto, moldam e direcionam o
andamento da cultura. Talvez esse tipo de conflito que é levado até uma suprema
corte incomode e faça com que alguns questionem a legitimidade do nosso sistema
democrático. Esta posição é totalmente oposta ao entendimento de Fran Zemans,
que entende a mobilização do direito como uma forma clássica de atividade
democrática, pois possibilita e catalisa o reconhecimento de liberdades e
garantias dos grupos minoritários, realçando a soberania popular do nosso
sistema.
Dentre as principais críticas destinadas à polêmica
decisão, destacam-se as que questionam a forma como a criminalização da
homofobia foi produzida. A decisão do
STF violou o princípio da legalidade previsto no artigo 5°, inciso XXXIX da
C.F: “Não há crime sem lei que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”.
A suprema Corte, ao determinar que a homofobia passe a ser punida pela lei de
racismo (7716/89), criou um tipo penal, atitude arriscada para um Estado
Democrático de Direito. Além disso, a decisão analisada aqui representou uma
contradição à jurisprudência interna do guardião da carta magna que vinha
assegurando que: “no âmbito do direito penal incriminador, o que vale é o
princípio da reserva legal, ou seja, só o parlamento, exclusivamente, pode
aprovar crimes e penas”. Vide caso de absolvição do deputado Marco Feliciano e
o da possibilidade de criminalização de condutas por meio de tratados
internacionais.
Durante o julgamento, um documento chegou ao plenário do
tribunal com o seguinte conteúdo: “Os aludidos fatos supervenientes demonstram
que a matéria objeto de apreciação dessa corte está sendo apreciado pelo Senado
Federal, no exercício de sua competência constitucional típica de aprimorar a
legislação penal existente”. O plenário do STF, após solicitação do presidente
da Corte, rejeitou o adiamento da decisão em decorrência da análise
concomitante do Senado. Esta atitude do tribunal foi uma clara demonstração de
desequilíbrio entre os poderes, pois a corte excedeu as suas funções. É
justamente esse tipo de conduta que é criticada pela autora alemã Ingeborg
Maus, ao levantar a questão de que quando a justiça ascende à condição de mais alta instância moral da sociedade,
nenhum mecanismo de controle social (ao qual deve se submeter toda instituição
em uma sociedade democrática) poderá freá-la.
Tendo em vista as diferentes opiniões sobre a atuação do
STF, é necessário destacar que apesar das críticas, o Tribunal exerceu uma
função de grandeza ao criminalizar a homofobia, pois esta é uma questão de
urgência, atrelada à sobrevivência de grupos minoritários que foram e ainda são
perseguidos. Essa decisão foi apenas paliativa, com o intuito de fornecer
alguma espécie de amparo legal para os grupos LGBT, sendo a atuação do
Congresso Nacional imprescindível para que mudanças culturais mais
significativas possam ocorrer na nossa sociedade. De acordo com a ministra
Carmem Lúcia: “O estado legislador recebeu uma ordem constitucional (de punir
toda forma de preconceito). A quantas anda isso 30 anos depois? O estado juiz é
agora chamado e vai se omitir também?”. Consonante com esse posicionamento está
o ministro Barroso, ao argumentar que: “A conservação e a promoção dos direitos
fundamentais, mesmo contra a vontade das maiorias políticas, é uma condição de
funcionamento do constitucionalismo democrático. Logo, a intervenção do
judiciário, nesses casos, sanando uma omissão legislativa ou invalidando uma
lei inconstitucional, dá-se a favor e não contra a democracia”.
Nicolas Candido Chiarelli do
Nascimento
Turma XXXVI, diurno
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