A dois passos do paraíso?
Acredito firmemente que a
felicidade do cidadão está centrada sobretudo na própria felicidade dos membros
da entidade familiar. Uma família equilibrada, de autoestima valorizada e
assistida pelo Estado é sinônimo de uma sociedade mais fraterna e também mais
feliz. Por cultivar essa crença, submeto à apreciação dos nobres pares o
presente projeto de lei que, em síntese, institui o Estatuto da Família.
(Trecho da Justificação do
Projeto de Lei de 2013 que institui o Estatuto da Família)
Would you know my name if I saw you
in Heaven?
Would it be the same if I saw you in Heaven?
I must be strong and carry on
'Cause I know I don't belong here in
Heaven
Would you hold my hand if I saw you
in Heaven?
Would you help me stand if I saw you in Heaven?
I'll find my way through night and day
'Cause I know I just can't stay
here in Heaven
[…]
(Tears in Heaven – Eric Clapton)
Em 2013, com o controverso projeto de lei que institui o Estatuto da Família, o Legislativo tocou em um assunto que parecia ganhar capítulos finais, não pela convergência política, mas em razão da atuação do Supremo Tribunal Federal: a união homoafetiva. É que, em 05/05/2011, o Plenário da Suprema Corte, por meio da análise da ADI nº 4.277/DF, que encampava aos fundamentos da ADPF nº 132/RJ, procurava dar solução a uma demanda social cada vez mais urgente: o reconhecimento da união homoafetiva como instituto jurídico, e como instituição familiar à luz da Constituição. A questão é deveras relevante, pois se encontra no cerne de um sem número de situações concretas, envolvendo, por exemplo, a negação a casais homoafetivos estáveis, pela administração pública e pelas instâncias judiciais inferiores, de direitos previdenciários e assistenciais reconhecidos àqueles de preferência “heterossexual”, no âmbito do serviço público. Na ocasião, o Plenário reconheceu, de forma unânime, a união homoafetiva como entidade familiar e a sua isonomia em relação aos casais heteroafetivos.
No caso em apreço, ficou patente o fenômeno da Judicialização,
caracterizado, conforme ensina o professor Barroso, pelo protagonismo do Poder
Judiciário na resolução de questões de larga repercussão política e social,
ante a inércia dos demais Poderes. Mas uma atuação legítima, frise-se, tendo em
vista a competência técnica da Suprema Corte para se pronunciar sobre direitos
fundamentais em face de todo o arcabouço constitucional; além do dever
institucional que lhe cabe de velar pelas regras do jogo democrático, balanceando
o sentimento social majoritário e as necessidades contramajoritárias. Esse
papel lhe é inescapável. Assim, coube ao STF intervir, de forma definitiva, em uma
questão que encontrava resistências e dificuldades para avançar no campo
político.
Os grupos contrários à isonomia fundamentavam-se, de modo geral, no
art. 226, § 3º, da CF/88, e no art. 1.723 do CC, cujos textos, relativos à hipótese
de reconhecimento de entidade familiar, expressamente faziam referência à união
estável entre homem e mulher. Ou seja, segundo esses grupos, o ordenamento
jurídico era categórico e não contemplava a união homoafetiva. Todavia, como
bem esclarece o professor Barroso: “mesmo nas situações que, em tese, comportam
mais de uma solução plausível, o juiz deverá buscar a que seja mais correta,
mais justa, à luz dos elementos do caso concreto”. E, no caso em apreço, os
fatos denunciam um discurso que atravessa as páginas da lei e fere de morte o
ser humano, em sua dignidade. Disse bem a Procuradora-Geral da República ao
lembrar que o dispositivo constitucional em questão surgiu como instrumento de
inclusão social, ao conferir tutela constitucional a formações familiares
informais antes desprotegidas; sendo um contra-senso, portanto, interpretá-lo
como cláusula de exclusão. Melhores ainda foram as palavras do Ministro Ayres
Britto, ao abrir nossos olhos para o sentimento universal do amor, como o guia legítimo
do intérprete do Direito (como política) pelo território das relações afetivas.
Território este cortado pelos estreitos caminhos do Direito não política.
A ideia de que uma futura sociedade fraterna e feliz se constrói sobre
a discriminação e sobre a fria letra da lei, não se coaduna com os objetivos
fundamentais estabelecidos pela Constituição, tampouco com o espírito
democrático. O paraíso de alguns não significa a felicidade de todos, muito
menos se ele implicar em completo desamparo daquele que ficou apenas com a dor
da morte de um ente querido.
Fernando –
1º Ano Direito Noturno (texto sobre Democracia, Judicialização e Ativismo
Judicial - Barroso)
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