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sexta-feira, 17 de julho de 2015

Choque de realidade

    Estavam pai e filho conversando em uma praça, o garoto tinha oito anos aproximadamente. O pai, embora fosse relativamente jovem, aparentava ser muito mais velho do que realmente era, estava com um ar de cansaço e não muito contente com sua vida.
    Sentei próximo ao banco em que os dois estavam e continuei a ler o livro “contos” de Machado de Assis que me acompanha em todos os lugares que eu vou. No entanto, apesar de estar lendo o livro não pude deixar de escutar a conversa dos dois. O filho se queixava que o pai estava muito ausente, que não o levava no treino de futebol, e nunca ia assistir aos campeonatos. O pai tentava se defender, dizia que trabalhava muito para poder dar boas condições de vida para ele e para os seus irmãos e que ele era obrigado a se sujeitar a vontade de seu chefe, porque afinal dependia dele para assegurar a renda da família.
    Aquelas palavras me inquietaram, comecei a ler o “Um Apólogo”, um dos meus contos favoritos, em voz alta.


Um Apólogo
Machado de Assis

Era uma vez uma agulha, que disse a um novelo de linha:
— Por que está você com esse ar, toda cheia de si, toda enrolada, para fingir que vale alguma cousa neste mundo?
— Deixe-me, senhora.
— Que a deixe? Que a deixe, por quê? Porque lhe digo que está com um ar insuportável? Repito que sim, e falarei sempre que me der na cabeça.
— Que cabeça, senhora?  A senhora não é alfinete, é agulha.  Agulha não tem cabeça. Que lhe importa o meu ar? Cada qual tem o ar que Deus lhe deu. Importe-se com a sua vida e deixe a dos outros.
— Mas você é orgulhosa.
— Decerto que sou.
— Mas por quê?
— É boa!  Porque coso.  Então os vestidos e enfeites de nossa ama, quem é que os cose, senão eu?
— Você?  Esta agora é melhor. Você é que os cose? Você ignora que quem os cose sou eu e muito eu?
— Você fura o pano, nada mais; eu é que coso, prendo um pedaço ao outro, dou feição aos babados...
— Sim, mas que vale isso? Eu é que furo o pano, vou adiante, puxando por você, que vem atrás obedecendo ao que eu faço e mando...
— Também os batedores vão adiante do imperador.
— Você é imperador?
— Não digo isso. Mas a verdade é que você faz um papel subalterno, indo adiante; vai só mostrando o caminho, vai fazendo o trabalho obscuro e ínfimo. Eu é que prendo, ligo, ajunto...
Estavam nisto, quando a costureira chegou à casa da baronesa. Não sei se disse que isto se passava em casa de uma baronesa, que tinha a modista ao pé de si, para não andar atrás dela. Chegou a costureira, pegou do pano, pegou da agulha, pegou da linha, enfiou a linha na agulha, e entrou a coser.  Uma e outra iam andando orgulhosas, pelo pano adiante, que era a melhor das sedas, entre os dedos da costureira, ágeis como os galgos de Diana — para dar a isto uma cor poética. E dizia a agulha:
— Então, senhora linha, ainda teima no que dizia há pouco?  Não repara que esta distinta costureira só se importa comigo; eu é que vou aqui entre os dedos dela, unidinha a eles, furando abaixo e acima...
A linha não respondia; ia andando. Buraco aberto pela agulha era logo enchido por ela, silenciosa e ativa, como quem sabe o que faz, e não está para ouvir palavras loucas. A agulha, vendo que ela não lhe dava resposta, calou-se também, e foi andando. E era tudo silêncio na saleta de costura; não se ouvia mais que o plic-plic-plic-plic da agulha no pano. Caindo o sol, a costureira dobrou a costura, para o dia seguinte. Continuou ainda nessa e no outro, até que no quarto acabou a obra, e ficou esperando o baile.
Veio a noite do baile, e a baronesa vestiu-se. A costureira, que a ajudou a vestir-se, levava a agulha espetada no corpinho, para dar algum ponto necessário. E enquanto compunha o vestido da bela dama, e puxava de um lado ou outro, arregaçava daqui ou dali, alisando, abotoando, acolchetando, a linha para mofar da agulha, perguntou-lhe:
— Ora, agora, diga-me, quem é que vai ao baile, no corpo da baronesa, fazendo parte do vestido e da elegância? Quem é que vai dançar com ministros e diplomatas, enquanto você volta para a caixinha da costureira, antes de ir para o balaio das mucamas?  Vamos, diga lá.
Parece que a agulha não disse nada; mas um alfinete, de cabeça grande e não menor experiência, murmurou à pobre agulha: 
— Anda, aprende, tola. Cansas-te em abrir caminho para ela e ela é que vai gozar da vida, enquanto aí ficas na caixinha de costura. Faze como eu, que não abro caminho para ninguém. Onde me espetam, fico. 
Contei esta história a um professor de melancolia, que me disse, abanando a cabeça:
— Também eu tenho servido de agulha a muita linha ordinária!


    Ambos calaram-se, acharam estranha minha atitude, mas ficaram escutando com muita atenção cada palavra que eu pronunciava, com o intuito de ao menos compreender o que eu estava fazendo.           Quando terminei a leitura, virei para o pai e disse:
- Machado de Assis fez uso da agulha e da linha para metaforizar certas relações interpessoais. Sem querer, acabei escutando a conversa de vocês dois e vou te dar um conselho, pare de ser a agulha para o seu patrão, pois enquanto você perde momentos importantes da vida de seu filho, o burguês, aquele que detém os meios de produção, “vai gozar da vida” que você possibilitou a ele.

    Saí de perto e ele ficou com um olhar reflexivo enquanto seu filho o olhava sem compreender muito bem tudo aquilo. 
1º Ano- Direito Noturno
Introdução à Sociologia
Ariane do Nascimento Sousa


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