Estavam pai e filho
conversando em uma praça, o garoto tinha oito anos aproximadamente. O pai,
embora fosse relativamente jovem, aparentava ser muito mais velho do que
realmente era, estava com um ar de cansaço e não muito contente com sua vida.
Sentei próximo ao banco
em que os dois estavam e continuei a ler o livro “contos” de Machado de Assis
que me acompanha em todos os lugares que eu vou. No entanto, apesar de estar
lendo o livro não pude deixar de escutar a conversa dos dois. O filho se
queixava que o pai estava muito ausente, que não o levava no treino de futebol,
e nunca ia assistir aos campeonatos. O pai tentava se defender, dizia que
trabalhava muito para poder dar boas condições de vida para ele e para os seus
irmãos e que ele era obrigado a se sujeitar a vontade de seu chefe, porque
afinal dependia dele para assegurar a renda da família.
Aquelas palavras me
inquietaram, comecei a ler o “Um Apólogo”, um dos meus contos favoritos, em voz
alta.
Um Apólogo
Machado de Assis
Era uma vez uma agulha, que disse a um novelo de linha:
— Por que está você com esse ar,
toda cheia de si, toda enrolada, para fingir que vale alguma cousa
neste mundo?
— Deixe-me, senhora.
— Que a deixe? Que a deixe, por
quê? Porque lhe digo que está com um ar insuportável? Repito que sim, e falarei
sempre que me der na cabeça.
— Que cabeça, senhora? A
senhora não é alfinete, é agulha. Agulha não tem cabeça. Que lhe importa
o meu ar? Cada qual tem o ar que Deus lhe deu. Importe-se com a sua vida e
deixe a dos outros.
— Mas você é orgulhosa.
— Decerto que sou.
— Mas por quê?
— É boa! Porque coso.
Então os vestidos e enfeites de nossa ama, quem é que os cose, senão eu?
— Você? Esta agora é melhor.
Você é que os cose? Você ignora que quem os cose sou eu e muito eu?
— Você fura o pano, nada mais; eu é
que coso, prendo um pedaço ao outro, dou feição aos babados...
— Sim, mas que vale isso? Eu é que
furo o pano, vou adiante, puxando por você, que vem atrás obedecendo ao que eu
faço e mando...
— Também os batedores vão adiante
do imperador.
— Você é imperador?
— Não digo isso. Mas a verdade é
que você faz um papel subalterno, indo adiante; vai só mostrando o caminho, vai
fazendo o trabalho obscuro e ínfimo. Eu é que prendo, ligo, ajunto...
Estavam nisto, quando a costureira
chegou à casa da baronesa. Não sei se disse que isto se passava em casa de uma
baronesa, que tinha a modista ao pé de si, para não andar atrás dela. Chegou a
costureira, pegou do pano, pegou da agulha, pegou da linha, enfiou a linha na
agulha, e entrou a coser. Uma e outra iam andando orgulhosas, pelo pano
adiante, que era a melhor das sedas, entre os dedos da costureira, ágeis como
os galgos de Diana — para dar a isto uma cor poética. E dizia a agulha:
— Então, senhora linha, ainda teima
no que dizia há pouco? Não repara que esta distinta costureira só se
importa comigo; eu é que vou aqui entre os dedos dela, unidinha a eles, furando
abaixo e acima...
A linha não respondia; ia andando.
Buraco aberto pela agulha era logo enchido por ela, silenciosa e ativa, como
quem sabe o que faz, e não está para ouvir palavras loucas. A agulha, vendo que
ela não lhe dava resposta, calou-se também, e foi andando. E era tudo silêncio
na saleta de costura; não se ouvia mais que o plic-plic-plic-plic da agulha no pano. Caindo o sol, a
costureira dobrou a costura, para o dia seguinte. Continuou ainda nessa e no
outro, até que no quarto acabou a obra, e ficou esperando o baile.
Veio a noite do baile, e a baronesa
vestiu-se. A costureira, que a ajudou a vestir-se, levava a agulha espetada no
corpinho, para dar algum ponto necessário. E enquanto compunha o vestido da
bela dama, e puxava de um lado ou outro, arregaçava daqui ou dali, alisando,
abotoando, acolchetando, a linha para mofar da agulha, perguntou-lhe:
— Ora, agora, diga-me, quem é que
vai ao baile, no corpo da baronesa, fazendo parte do vestido e da elegância?
Quem é que vai dançar com ministros e diplomatas, enquanto você volta para a
caixinha da costureira, antes de ir para o balaio das mucamas? Vamos,
diga lá.
Parece que a agulha não
disse nada; mas um alfinete, de cabeça grande e não menor experiência, murmurou
à pobre agulha:
— Anda, aprende, tola. Cansas-te em abrir caminho para ela
e ela é que vai gozar da vida, enquanto aí ficas na caixinha de costura. Faze
como eu, que não abro caminho para ninguém. Onde me espetam, fico.
Contei esta história a um professor de melancolia, que me
disse, abanando a cabeça:
— Também eu tenho servido de agulha a muita linha
ordinária!
Ambos
calaram-se, acharam estranha minha atitude, mas ficaram escutando com muita
atenção cada palavra que eu pronunciava, com o intuito de ao menos compreender o
que eu estava fazendo. Quando terminei a
leitura, virei para o pai e disse:
-
Machado de Assis fez uso da agulha e da linha para metaforizar certas relações
interpessoais. Sem querer, acabei escutando a conversa de vocês dois e vou te
dar um conselho, pare de ser a agulha para o seu patrão, pois enquanto você
perde momentos importantes da vida de seu filho, o burguês, aquele que detém os
meios de produção, “vai gozar da vida” que você possibilitou a ele.
Saí de
perto e ele ficou com um olhar reflexivo enquanto seu filho o olhava sem
compreender muito bem tudo aquilo.
1º Ano- Direito Noturno
Introdução à Sociologia
Ariane do Nascimento Sousa
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