Sara Araújo conceitua a existência de uma colonialidade no âmbito jurídico, marcada, analogamente ao colonialismo presente na história, pela perspectiva eurocêntrica. A autora define esse fenômeno como a presença de uma divisão entre o mundo ocidental, superior, em contraposição ao “outro”, categorizado de forma generalizante como aquele que deve receber o conhecimento, desconsiderando qualquer diversidade e particularidade culturais.
Com base nessa divisão, emprestando definições de Boaventura de Sousa Santos, a doutora detalha como essa dicotomia se dá por uma linha abissal que separa o Ocidente/Norte, definido como universal e hegemônico; e o restante, resumidamente definido como tudo aquilo que escapa à lógica eurocêntrica ou é “atrasado” em relação ao primeiro. Esse restante, por sua vez, deixa de existir na prática, pois não desempenha nenhuma função frente à universalidade imposta sobre ele.
Nesse contexto, é possível observar uma evidência da dicotomia na realidade brasileira, com base na análise do caso de Pinheirinho, bairro em São José dos Campos, vítima de uma operação de retirada de milhares de famílias e lares para um processo de reintegração de posse. Em uma publicação da Comissão de Direitos Humanos do Sindicato de Advogados do Estado de São Paulo, são mencionados inúmeros casos de violência direcionada aos moradores de Pinheirinho, incluindo racismo, estupro e agressão de crianças no processo de expulsão deles. Vale ressaltar que trata-se um território que estava vazio até 2004, quando foi ocupado por famílias que haviam sido despejadas.
A partir desse caso específico, destaca-se o desrespeito à função social da terra, garantido pela Constituição Federal de 1988. Sob a perspectiva de Araújo, pode-se considerar que esse direito está “do outro lado” da linha abissal, ou seja, não corresponde aos valores impostos pelo eurocentrismo como universais. Esse direito social foi cruelmente desrespeitado, embora pressuposto constitucionalmente, porque parte de uma minoria, aquela que deve receber o conhecimento oferecido pelo “lado de cá” da linha desenhada pelo Ocidente.
Por fim, é importante ressaltar como a influência desse fenômeno no mundo serviu nesse caso -e serve em inúmeros outros- para legitimar o desrespeito aos direitos humanos daqueles que se encontram “do outro lado” da linha. A própria publicação do Sindicato exemplifica como a justificativa do crescimento econômico relativiza esse tipo de crime contra a dignidade humana, citando grupos (“tribos indígenas inteiras, florestas, famílias pobres, sem-terras, sem-tetos, dependentes químicos”) que, assim como os moradores de Pinheirinho, são removidos em nome de um suposto avanço que, de acordo com o cânone hegemônico, ainda não foi alcançado pelo “resto”.
Ana Clara Alves Gasparotto - Direito Matutino - 2º semestre (Turma XXXVIII)
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