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terça-feira, 30 de novembro de 2021

A exclusão abissal dos transsexuais

Segundo Sara Araujo, “o direito moderno é uma invenção ocidental” (ARAÚJO, 2016, p. 90) e as exclusões que ele promove também são. Nesse sentido, todas as formas de vida que eram vistas pelo ocidente como “inferiores, primitivos, locais, residuais ou improdutivos” (ARAÚJO, 2016, p. 88) foram excluídas e colocadas “do outro lado da linha (abissal)” (ARAÚJO, 2016, p. 88).

A transexualidade é um exemplo do que se situa do outro lado da linha abissal, pois, apesar de algumas comunidades primitivas considerarem a transexualidade como algo natural, o ocidentalismo e o eurocentrismo caracterizaram-no como uma patologia, submetendo aqueles que se identificavam como transsexuais à “morte legitimada em fogueiras, torturas, pena de morte; exclusão do convívio social; doença, tratamento médico, eletrochoque” (CANNONE, 2019).

O direito também seguiu essa linha, colocando obstáculos àqueles que se fogem dos parâmetros impostos pelo colonialismo. No Brasil, por exemplo, a dificuldade de alteração do nome – que só é possível, decorrido o primeiro ano da maioridade, após a audiência do Ministério Publico e com motivos para tanto (art. 58 da Lei de Registros Públicos) – e a dificuldade de conseguir a cirurgia de redesignação de sexo – que “só ocorre por exigência médica, conforme preceituam o caput do artigo. 13 do Código Civil Brasileiro e o Enunciado 276 da IV Jornada de Direito Civil (2007), do Conselho de Justiça Federal” (OLIVEIRA, 2017) – exemplificam tais obstáculos. Dessa forma, o direito moderno, apesar de evoluções nos últimos anos referentes a esse tema, continua discriminando e dificultando a vida daqueles que se situam do outro lado da linha abissal.

Assim, na petição para a cirurgia de transgenitalização pelo SUS, feita em Jales-SP, o juiz propõe que esse espaço dos possíveis sejas ampliado a fim de abarcar outras formas de expressão e vivencia não hegemônicas – ocidentais – e romper com a linha abissal desenhada pela ideologia dominante.

Não podemos manter intocável esse horizonte simbólico, impondo como normas-padrão certos modelos sexuais, lançando para a exclusão outras formas de viver a sexualidade, atirando para o bueiro da patologia outras vivências em torno da sexualidade. Os transtornos que daí decorrem surgem exatamente do meio social, dos preconceitos, das exigências constantes de a pessoa apresentar-se documentalmente como do sexo oposto àquele que compõe o íntimo do indivíduo, dos sistemas de poder que configuram uma moldura específica, comum, generalizada, repetitiva, de manifestação da sexualidade – de uma manifestação heterossexual, com a exclusão de outras maneiras e formas de o indivíduo aparecer sexualmente na sociedade. (ARAÚJO, 2016, p. 2).

Ainda complementa expondo as reais motivações que levaram a caracterização da transexualidade como patologia.

Por que caracterizá-los como doentes, dotados de uma patologia que precisa ser curada? Aqui lutamos contra uma ideia de família hierarquizada. A sociedade tecnológica precisa moldar os indivíduos. A produção em série exige indivíduos iguais, padronizados. A ideia de família padrão, constituída de pai, mãe e filhos, é uma derivação e consolidação desse ideário. A padronização, num mundo plenamente administrado, é importante, para retirar, de cena, os incômodos, as diferenças, as não repetições. [...] Patológica é a sociedade tecnológica, administrada, capitalista, que trata os problemas sociais, as diferenças como enfermidades, exatamente para “curá-los”, de forma que o padrão seja cristalizado. (ARAÚJO, 2016, p. 3 e 4).

Conclui-se, pois, que a associação da transexualidade a uma patologia é uma ideia colonial, impostas juntamente com outros preconceitos, os quais promoveram a exclusão de saberes, formas de vida, culturas em nome do “progresso” – nos moldes europeus. Logo, a crítica feita na petição a essa homogeneização é um reflexo daquilo proposto por Sara Araújo: “a ampliação do cânone jurídico pela dilatação do leque de experiencia conhecida” (ARAÚJO, 2016, p. 88) com o objetivo de “incluir outras vozes e direitos subalternos que se exprimem noutros termos e não se ouvem fora da sociedade civil” (ARAÚJO, 2016, p. 107) ocidental e eurocêntrica.

Bibliografia

ARAÚJO, Sara. O primado do direito e as exclusões abissais: reconstruir velhos conceitos, desafiar o cânone. Sociologias, Porto Alegre, ano 18, n.o 43, set/dez 2016, p. 88-115.

BIANQUE, Guilherme Fajardo. O transexual e o Direito brasileiro. 2015. Disponível em: https://guifajardo.jusbrasil.com.br/artigos/336214327/o-transexual-e-o-direito-brasileiro. Acesso em: 21 de novembro de 2021.

CANNONE, Lara Araújo Roseira. Historicizando a Transexualidade em Direção a uma Psicologia Comprometida. 2019. Disponpivel em: https://doi.org/10.1590/1982-3703003228487. Acesso em: 21 de novembro de 2021.

FORNACIARI JR., Clito. Da alteração do nome. Disponível em:  https://www.migalhas.com.br/depeso/326390/da-alteracao-do-nome. Acesso em: 21 de novembro de 2021.

OLIVEIRA, Rogério Alvarez de. Ações para mudança de sexo e nome e a intervenção do Ministério Público. 2017. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2017-out-02/mp-debate-acoes-mudanca-sexo-nome-intervencao-mp. Acesso em: 21 de novembro de 2021.

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