Atualmente,
no Supremo Tribunal Federal (STF), está em curso o processo que julga a
reintegração de posse movida pelo governo de Santa Catarina contra o povo
Xokleng, referente à Terra Indígena Ibirama-LaKlãnõ, que também serve de lar
para os povos Kaingang e Guarani. Trata-se do Recurso Extraordinário com
repercussão geral 1.017.365, de alta relevância, pois a decisão servirá como
diretriz para todos os outros casos judicializados que envolvem terras
indígenas – há, portanto, a necessidade de uma definição sobre o tema.
Nessa
disputa, são duas teses em debate: de um lado, o Marco Temporal e de outro, a
Teoria do Indigenato. O Marco Temporal, apoiado por empresas, ruralistas e
setores políticos e econômicos interessados na exploração das terras indígenas,
defende que as comunidades indígenas só teriam direito à demarcação de terras
que estivessem em sua posse no dia da promulgação da Constituição Cidadã, 5 de outubro de 1988. A Teoria do Indigenato,
por sua vez, firmada pela Constituição Federal de 1988, concebe o direito
indígena à terra como originário, anterior à formação do próprio Estado
brasileiro, independendo de qualquer marco temporal – afinal, é preciso levar
em conta que muitos povos indígenas foram expulsos forçadamente de suas terras
e estiveram, ao longo de toda a história brasileira, sujeitos a uma série de
violências, que configuraram um verdadeiro genocídio.
Dessa
forma, cabe falar, nessa situação, sobre o que a Doutora em “Direito, Justiça e
Cidadania no Século XXI”, pela Universidade de Coimbra, Sara Araújo, concebe em
seu artigo “O primado do direito e as exclusões abissais: reconstruir velhos
conceitos, desafiar o cânone”. Segundo ela:
“O
Estado de direito, enquanto modelo exportável, assenta nos princípios jurídicos
modernos, reconhece as agências internacionais que asseguram a hegemonia do
modelo capitalista neoliberal e reivindica a universalidade dos direitos
humanos formulados a partir de uma perspectiva eurocêntrica, ao mesmo tempo que
os evoca de forma seletiva, de acordo com os seus interesses. Esse modelo jurídico,
que se apresenta como técnico e não político, respeita mais os mercados do que
as pessoas, atropela ordenamentos jurídicos que regem outras culturas e outras
organizações políticas e cria a sociedade civil incivil. ”.
Isto
posto está em total consonância com a situação apresentada - os direitos
humanos são evocados seletivamente, de acordo com interesses específicos de uma
perspectiva eurocêntrica. E sim, pode-se dizer eurocêntrica, apesar de se
referir a uma situação corrente em terras tupiniquins, no hemisfério sul, pois,
o pensamento hegemônico – o Marco Temporal – muito carrega um ideário
colonizador. Além disso, o modelo jurídico de Estado de direito apontado pela autora,
que é técnico e respeita mais mercados do que as pessoas, além de todo o resto
apontado, está muito bem representado nessa mesma tese. Portanto, o direito, de
acordo com Sara Araújo, acaba servindo como “um instrumento de expansão do
colonialismo e do capitalismo, sendo responsável pela invisibilização jurídica pelo
silenciamento de sujeitos. ”
E como superar isso? Por meio, na visão de
Araújo, de uma “recuperação do conceito de pluralismo jurídico num horizonte de
reconhecimento de outros universos jurídicos. ”. Assim, para além de uma mera
descrição de uma pluralidade, é preciso também que se transforme as hierarquias
impostas pela modernidade. No âmbito do pluralismo jurídico, como ela discorre
ao longo do artigo, apoiada em Boaventura de Sousa Santos, nas Epistemologias
do Sul (o Sul aqui é mais do que um sul geográfico, ele representa tudo que não
é hegemônico) percebe-se o uso coletivo do direito justamente como forma de
resistir às globalizações hegemônicas.
E
o uso coletivo do direito, antes indicado, está presente nas lutas do movimento
indígena no Brasil. “Nossa história não começa em 1988! ” é uma das frases
presentes nas manifestações indígenas contrárias ao Marco Temporal. Ainda hoje,
essas populações estão em guerra, pois a cada instante, forças hegemônicas buscam
minar seus direitos e até, suas próprias vidas, sendo o interesse mercadológico
e capitalista preponderante. Hoje, contudo, os desafios desse movimento são outros,
como explica Ailton Krenak, líder indígena e hoje com 68 anos, em entrevista ao
jornal Believe.Earth em 2018, quando questionado sobre quais seriam os desafios
das lideranças indígenas jovens:
“A
minha geração lutou para que direitos se tornassem lei. As lideranças de hoje
têm a missão de defender esses direitos e fazer com que sejam respeitados – e
isso elas estão fazendo. Basta ver a grande presença de índios em movimentos
sociais e o fato de que, frequentemente, eles vão a Brasília se manifestar
junto ao Congresso. Eles estão mobilizados. Não acho que, a cada década, os
índios tenham de lutar por novas leis. As políticas que o Estado brasileiro tem
de fazer em relação aos índios já estão estabelecidas. A missão agora é fazer
cumprir e pronto. ”.
Referências:
https://www.socioambiental.org/pt-br/noticias-socioambientais/stf-retoma-julgamento-historico-sobre-o-marco-temporal-nesta-quarta-19
https://believe.earth/pt-br/ailton-krenak-os-frutos-do-discurso-que-comoveu-o-pais/
Acesso em: 02/12/2021.
Laura Ruas, Direito Matutino
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