''O pássaro é livre na prisão do ar
O espírito é livre na prisão do corpo''
O espírito é livre na prisão do corpo''
Drummond
Desde os
sete anos XXX se sente desconfortável com o seu sexo biológico e com o papel de
gênero vinculado ao masculino. A partir dos 15 iniciou o uso de hormônios para
se adequar ao feminino, conforme foi adquirindo os traços de mulher passou a ter uma vida marcada pela violência e pelo
preconceito, dada a aversão social a transgeneridade- a qual é vista como uma
aberração pela sociedade e como patologia pela ciência. Há anos ela se submete
a acompanhamentos sócio-psíquicos e todos os laudos dos profissionais da saúde
apontam que XXX está certa quanto à cirurgia de trangenitalização e que não suportará
por muito tempo manter-se em um corpo que não a pertence. Frente a esse quadro
marcado por sofrimentos, angustias e pelo risco de suicídio, o juiz de primeira
instância concede a tutela antecipada aos seguintes pedidos pleiteados pela
transexual: a cirurgia de mudança de sexo
custeada pelo S.U.S, bem como a alteração do registro civil e do gênero do
masculino para o feminino.
A decisão pela tutela antecipada se
justifica, pois se trata de uma situação urgente, cuja falta de resposta ou a
demora desta pode resultar no suicídio da transexual. O juiz fundamentou sua
sentença, basicamente, na ideia de direitos implicitamente positivados. Apesar
de o direito fundamental a identidade trans não estar posto de forma expressa, ele está implícito uma vez que os nossos princípios constitucionais alicerçam-se na liberdade, no respeito à dignidade da pessoa humana e no
direito fundamental à vida. Há também uma jurisprudência favorável,
principalmente no que tange a questão da mudança de gênero e prenome, ademais,
deve-se considerar os princípios das legislações internacionais das quais somos
signatários, como a declaração universal de direitos humanos. Soma-se, ainda, o
art. 13 do CC que permite a disposição do próprio corpo por exigência médica e a
autorização do Conselho Federal de Medicina à realização da cirurgia de mudança
de sexo, desde que constatado o quadro de transexualismo.
Diante da decisão judicial fica evidente a
afirmativa de Weber de que não há direito totalmente formal (direito puro,
refere-se ao ordenamento positivado) ou puramente material (aquele que leva em
consideração fatores extrajurídicos), pois ambos se interpenetram. A sentença
de primeira instância pautou-se nas normas ‘’puras’’ como o art. 13, a decisão do
CFM e, ao preencher lacunas existentes (o direito a identidade trans não é
explícito), o juiz cumpre o que manda as leis de introdução às normas do
direito brasileiro nos casos em que a lei é omissa. Além disso, demonstra a racionalização jurídica descrita por Weber, através da
qual: ‘’para toda constelação de
fatos concreta deva ser possível encontrar, com os meios da lógica jurídica,
uma decisão a partir das vigentes disposições jurídicas abstratas’’.
Ao preencher as lacunas, o juiz interpretou
o sistema jurídico para além da forma, extraindo mais um direito fundamental: a
identidade trans, isto é, a decisão de primeira instância considerou a leitura
do ordenamento como um todo, além do histórico de sofrimento individual que ultrapassa
o subjetivo, pois a estigmatização da transexual está vinculada a uma questão social. Ademais, a sentença do julgado racionaliza e transforma o
direito material à identidade trans em direito formal jurisprudencial. E, assim
como a sociologia weberiana preza pela autonomia do individuo e pelo poder da
ação social, a decisão do juiz caminhou no sentido de valorizar o sujeito e o
direito fundamental a liberdade individual de dispor do próprio corpo e da própria
identidade.
Essa racionalização é, em Weber,
uma característica do Estado de Direito Moderno e se estende ao jurídico, as finanças, a ciência
e o próprio homem, quando este passa a seguir uma série de
condutas metódicas e calculadas que permitem prever o comportamento humano e homogeneizá-lo.
A manutenção na sociedade capitalista dos papeis tradicionais da divisão
binária gênero é um exemplo dessa racionalização do homem e de controle
metódico e calculado sobre os corpos. Assim, ao nascer menina ou menino há uma
socialização que torna uma série de condutas e funções do individuo úteis e previsíveis.
A pessoa trans ao não se adequar as expectativas, ofende o status quo e será
estigmatizada e pressionada à pertencer a uma das categorias de gênero. É importante observar também que a trajetória
da parte requerente (desde necessidade de patologização, os longos tratamentos
e o próprio processo judiciário) demonstra outra característica da modernidade
elencada por Weber: a burocracia.
Apesar
da argumentação jurídica racional, a sentença foi negada em segunda
instância. Isto é, no final o direito foi usado de acordo com as crenças e
interesses da moral conservadora dominante, confirmado a tese de Weber de que o
desenvolvimento social moderno debilitou, em grande medida, o racionalismo
jurídico formal, pois o direito cerca-se da irracionalidade ao responder aos
interesses de um grupo político hegemônico e autoritário. Para além da questão
psicológica, fica evidente que o sistema de gênero é o que Durkheim chama de ''fato social'', dada a exterioridade e coercitividade. A
divisão em feminino e masculino já existia antes de XXX nascer e desde a mais
tenra idade todo o ciclo social a orientou a seguir a cartilha do gênero compatível com o sexo biológico feminino. Ao romper com isso, a coerção torna-se gritante,
XXX busca se encaixar em um papel social, ainda que isso custe
recorrer a cirurgias e a hormônios. E nesse paradigma de coerção interna e externa as pessoas transexuais têm- inevitavelmente- uma vida marcada pela dor e violência, pelo derramamento de sangue na cirurgia,
na agressão social e, em muitos casos, no suicídio.
Juliana Inácio- Direito (noturno)
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