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quinta-feira, 21 de outubro de 2021

 Segundo Bourdieu, não há que se falar em autonomia absoluta do Direito. Tensões

sociais oriundas de outros campos influenciariam o campo jurídico, o qual, por sua vez,

reverberaria naqueles, em um complexo sistema de retroalimentação permanente. Essa

concepção nos é útil para analisar a aplicação de alguns institutos jurídicos tal como vem

sendo feita nos últimos anos no Brasil, sobretudo no âmbito das ações que visam a

responsabilização de agentes públicos.

Para além daquela grande operação de ampla repercussão na mídia, iniciada em 2014 e

que até hoje gera discussões, chama atenção também a autorização, por parte de uma

desembargadora do Tribunal Justiça do Rio de Janeiro, da prisão preventiva do prefeito da

capital do referido estado, no final do ano de 2020. A decisão foi polêmica, gerando

discussões e críticas dentro da comunidade jurídica, inclusive por parte daqueles que não

possuem nenhuma simpatia política ou ideológica pelo prefeito alvo da cautelar em questão.

Muitos opinaram pela abusividade da medida, alegando que, ainda que houvessem indícios de

ilícito, as justificativas apresentadas pela magistrada não seriam suficientes (não se

evidenciou probabilidade de fuga, de destruição de provas, entre outras) para autorizar esse

tipo de prisão.

A (in)validade jurídica dessa medida não cabe a este texto. Porém, é valido analisar

quais fatores por vezes impelem alguns magistrados – e os demais agentes do campo – a

decidirem de forma a empurrar as fronteiras do “espaço dos possíveis”. O histórico

patrimonialista da administração brasileira e a ampla repercussão midiática de grandes

esquemas de corrupção tornam as operações e ações judiciais contra agentes públicos um

investimento de capital simbólico altamente rentável. Isso fomenta os embates internos dos

atores desse campo, que disputam entre si – ou entre subgrupos – espaço para exercerem

poder simbólico suficiente para fazer valer sua respectiva visão, ou seja, para dizer o direito.

O interessante de ser notar é que, para Bourdieu, não seria possível descrever tal

fenômeno apenas sob a perspectiva do campo jurídico. Primeiro porque os agentes deste

trazem para sua atuação, ainda que de forma inconsciente, o habitus assimilado nos outros

demais campos. A racionalização dessa atuação por meio dos processos linguísticos próprios

do campo jurídico não é suficiente para afastar essa influência. Além disso, o capital

simbólico acumulado em tais casos não se origina exclusivamente no campo jurídico, nem se


destina a exercer poder somente neste. A projeção de alguns agentes desse campo nos demais

(como o político e o cultural) ilustra bem esse fenômeno.

Portanto, o método do sociólogo francês permite constatar que essa luta pelo poder

dentro do campo jurídico, simbolizada como o poder de dizer o direito, não é alheia às tensões

sociais que permeiam os demais campos. Sobre o caso em tela, a despeito da conversão da

medida em prisão domiciliar pelo STJ, o STF, de ofício, no ano seguinte, derruba a prisão. A

declaração de Gilmar Mendes toca nessa aplicação ampliada – e deturpada, na opinião de

muitos, inclusive na do ministro – da prisão cautelar como sendo resultado da influência de

elementos sociais extrajurídicos. Segundo o ministro, “o que tem-se verificado,

principalmente no âmbito dos crimes contra a Administração Pública, é uma recorrente

afirmação de vetores axiológicos etéreos e abstratos como o clamor social e a impunidade

generalizada como critérios aptos a lastrear a prisão cautelar”. Ora, esses vetores axiológicos

aos quais o ministro se refere, talvez não tão etéreos e abstratos assim para os campos

extrajurídicos, poderiam servir, para Bourdieu, de boas evidências da autonomia meramente

relativa do campo jurídico.


PEDRO ZANUTTO – DIREITO/NOTURNO

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