Ascenção
Marcos entrou no refeitório e preparou um café. Em seguida, veio Ricardo, que perguntou ao outro se os horários de lanche tinham sido trocados, recebeu resposta positiva, conferiu seu nome na tabela e, aliviado, confirmou que ambos estavam autorizados a estar ali das dez às dez e meia. Sentaram-se, e Ricardo largou a cabeça sobre os braços postos na mesa.
Como Marcos permanecera em silêncio, o desolado usufruiu de um espacinho para cuspir queixas em tom baixo e na velocidade de um raio. Disse que tinha nojo de ter perdido, para um computador (um comutador!) a função de organizador de arquivos que tanto amava, falou que não suportava mais ser incomodado por e-mails da empresa no domingo, que odiava, apesar de compreender, o fato de ele nunca conseguir ser tão produtivo na sexta quanto era na segunda-feira, e que o tio dele trabalhara no mesmo prédio por quarenta anos sem precisar aguentar uma ameaça de demissão sequer. Saltaram lágrimas daqueles olhos quando ele afirmou, diante de um Marcos imóvel, mas atento, que esse medo de perder o emprego afetou-lhe os apetites, a disposição para estar com os filhos e a relação com a esposa.
Como Marcos seguia firme nas mordiscadas do pedaço de bolo que trouxera, Ricardo ganhou coragem para puxar fôlego e colocar tudo para fora de uma vez. Disse ele que dava ódio saber do controle que meia dúzia de acionistas da Bolsa tinha sobre o seu suado salariozinho, que o tio amava a empresa de que fora funcionário a ponto de pendurar uma foto da equipe na parede, ao passo que ele, sobrinho, mal podia suportar ver aquelas caras no Facebook. Chorando, por fim, Ricardo admitiu que não tinha decidido se ensinava aos filhos valores de bondade, paciência e fraternidade, ou os de esperteza, competitividade e ambição, porque ele próprio não sabia em quais acreditar.
Marcos, cujo pratinho já estava quase vazio, sugeriu que o amigo acreditasse na Revolução. Explicou, ainda, os conceitos de alienação, superestrutura midiática, burguesia e proletariado ao colega, e comentou que as queixas do amigo eram próprias de quem temia virar exército de reserva, estrutura essa a real responsável pelo fim da estabilidade. Por fim, disse Marcos que eram os fortes sindicatos da época que favoreciam as condições de trabalho do tio, e não a competência pessoal dele ou a bondade dos patrões.
Encerrado o assunto, os dois prepararam-se para voltar ao trabalho e Ricardo tomou um susto ao perceber que eram dez e trinta e dois. Saiu, nesse instante, o chefe deles de trás da porta aberta da geladeira, que lhes fez sinal de corte próximo à garganta, gesticulou uma assinatura e apontou para a saleta do RH. Marcos foi, conformado, com o braço sobre as costas do amigo choroso. Eles não eram, naquele momento, outra coisa senão operários unidos.
E, antes que um dos dois abrisse a porta, afastou-se dela Adão, colega de ambos que ouvira tudo do lado de fora e, ao perceber o fim do espetáculo, tratara de enfiar-se no banheiro. Ricardo tinha lhe ajudado a imprimir uns documentos algumas vezes, e Marcos ia, toda semana, tomar café na casa dele, era verdade. Mas postos vagos eram postos vagos, e o moço teve que morder um pedaço da camiseta para não gargalhar com a dupla possibilidade e ascensão.
Maria Paula Aleixo Golrks - 1° semestre Direito Matutino
Nenhum comentário:
Postar um comentário