O julgamento da ADI
4277, que se deu de forma conjunta à ADPF 132, representou não só o
reconhecimento da união homoafetiva como entidade familiar, conferindo-lhe
todos os direitos e deveres de uma união estável; como importou numa ampla
quebra de paradigmas para o Direito das Famílias brasileiro e asseverou,
sobretudo, a valorização e a devida preponderância dos direitos fundamentais da
igualdade, liberdade, autonomia, isonomia e segurança jurídica.
A saber: o objeto das
ações se dera na reivindicação da interpretação do artigo 1.723 do Código Civil
de acordo com a Constituição: o artigo que reconhece como “entidade familiar a
união estável entre o homem e a mulher” deveria, portanto, ser percebido à luz
do Magno Texto. O ponto coerentemente pretendido liga-se, principalmente, ao
Art. 3º, IV, CF, que exalta entre os objetivos da República “promover o bem de
todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras
formas de discriminação”. Permeada por esses pressupostos é que se teve uma
decisão que chamou a atenção pela sua homogeneidade: as ações foram julgadas
procedentes por unanimidade, com grande parte dos ministros tendo inclusive
acompanhado na integralidade o voto do ministro relator Ayres Britto.
Perpassadas as
condições jurídicas do processo e seu fundamento, chama a atenção o quão
historicamente importante e paradigmático fora evento, mesmo que embora, na prática,
os tribunais e magistrados do 1º grau já vinham reconhecendo, antes da referida
decisão, pensão por morte, partilha de bens, declaração conjunta de imposto de
renda, direito real à habitação, entre outros devidos direitos, aos casais homossexuais.
Tal situação acaba por nos conectar frontalmente ao texto “Luta por
reconhecimento: a gramatica moral dos conflitos sociais”, de Axel Honneth; e
com ele dialoga, em especial com uma das dimensões do reconhecimento elencadas
pelo autor: a do Direito.
O autor evidencia nesta
dimensão a relação direta e intrínseca em reconhecer os indivíduos igualmente
para que assim estes se reconheçam e possam conceber-se de modo irrestrito como
seres autônomos e individualizados. Vê-se tal pensamento na ideia de que só é
possível se dar a desejada obediência às normas jurídicas quando os “parceiros
de interação” se sentirem livres e iguais por meio delas; ou ainda como Honneth
revela na premissa de que a partir da obediência a uma mesma lei – no sentido
isonômico da expressão − é que os sujeitos de direito poderão se reconhecer
reciprocamente. Justamente ao redor destes pressupostos é que gira a questão de
se legar à união homoafetiva o caráter de entidade familiar: negar tal
reconhecimento, além de reforçar injustiças culturais, acabaria por comprometer
a capacidade de indivíduos viverem a plenitude de suas existências; ou como
coloca o autor, estaria comprometendo os sujeitos humanos de poderem chegar a
uma atitude positiva para com eles mesmos – dai o peso e a importância devidamente
conferidos a essa decisão histórica do STF, mesmo que, na prática, os direitos
desejados já vinham sendo concedidos em certa medida.
Numa ampla análise,
vê-se que qualquer pretensa argumentação contra o acertado reconhecimento gira
em torno de aspectos reducionistas ou de algum “legalismo normativista deturpado”,
como se faz por meio do artigo 226, §
3º, CF, que enuncia o “entre o homem e a mulher”. Ora, como ressalta o próprio
ministro relator Ayres Britto, em seu voto, fazer uma aplicação literal acaba por
impensável em um contexto de uma constituição que relega ao Estado o dever de
não discriminar e reconhecer como sujeitos de direitos todos os cidadãos – em
suas palavras: “uma interpretação jurídica acanhada ou reducionista seria o
modo mais eficaz de tornar a constituição ineficaz”. Cabe-se o adendo, e agora se
amparando no pensamento do ministro Luiz Fux, a apreciação do “entre o homem e
a mulher” teria, na verdade, a intenção de tirar a marginalidade da união
estável, distante de qualquer cobiça restritiva de gênero, sendo, portanto,
“perverso conferir a uma norma de cunho indiscutivelmente emancipatório uma
interpretação restritiva”.
Dessa forma, tivera-se na situação, de um lado, um legislativo omisso,
sonolento e acovardado – já que existiam diversos projetos arquivados, ou
esbarrados em comissões parlamentares, sobre o reconhecimento de uniões
homoafetivas desde a década de 90 −, que se negara a admitir uma política de
reconhecimento de “um segmento da sociedade que vive parte importantíssima de
sua vida na sombra”, como coloca Fux, negando-lhe, assim, amor, auto-respeito,
auto-estima e a possibilidade de auto realização de um ser autônomo. E de outro
lado – felizmente vitorioso −, uma corte homogênea e consensual, que fez valer
os Direitos Fundamentais de igualdade, liberdade e, movida pelos “sentimentos
morais de injustiça”, ligada às experiências morais de desrespeito, marcando,
dessa forma, presença na história do Direito de Família brasileiro e deixando
em alto e bom tom que a orientação sexual de uma pessoa jamais deve ser usada
como fator de desigualação, sobretudo, jurídica.
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