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terça-feira, 23 de agosto de 2022

Breve análise do julgado relativo à ADPF 54 à luz de Bourdieu

 

O presente texto busca fazer uma análise sumária de alguns pontos levantados por ministros do Supremo Tribunal Federal no acórdão da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 54 à luz do conceito do espaço dos possíveis desenvolvido pelo filósofo Pierre Bourdieu, dando-se um enfoque a declarações feitas pelo ministro Marco Aurélio Mello e pela ministra Carmen Lúcia.

            É fundamental para esta análise lembrar o que diz Bourdieu a respeito do espaço dos possíveis: “obras jurídicas delimitam em cada momento o espaço dos possíveis”. Primeiramente, cabe observar que o conceito de espaço dos possíveis é bastante claro pela própria expressão, embora seja mais amplo do que ela talvez faça parecer: trata-se, grosso modo, do campo de possibilidades no que se refere à aquisição e manutenção de direitos dentro de uma determina realidade de exercício de poder.

Assim, é um ponto fundamental de sua visão sociológica o entendimento de que é necessário não reproduzir o erro tão prevalente no campo jurídico de ignorar o universo social em que o direito se reproduz e se insere.

Aplicando-se essa lógica ao julgado em questão, percebe-se a necessidade de se ter em mente todo o longuíssimo o histórico de subjugação do sexo feminino pelo masculino e de se considerar que, por meio das lutas sociais feministas, muitas conquistas foram obtidas no sentido de corrigir o desequilíbrio e as sequelas que ele deixou na realidade feminina, mas que o alcance desse ativismo ainda é assaz limitado. Em suma, trata-se de lembrar a dominação da mulher e de seu corpo pelo homem no contexto das relações de poder patriarcais que ainda persistem, embora um tanto mitigada em relação a momentos anteriores, no Brasil

A relevância do espaço dos possíveis fica visível na menção do Ministro Marco Aurélio às milhares de autorizações concedidas até então pelos juízes e tribunais de justiça para interrupção da gravidez em caso de incompatibilidade do feto com a vida extrauterina: a existência de precedentes, uma noção fundamental do direito, torna possível a ampliação ou diminuição desse espaço. Nesta ocasião, essa característica do campo jurídico favoreceu a reivindicação em questão.

Devemos analisar outro ponto relevante. É recorrente no decorrer dos textos das decisões o argumento de que sequer faz sentido falar em aborto no que se refere ao feto anencéfalo. “O anencéfalo jamais se tornará uma pessoa. Em síntese, não se cuida de vida em potencial, mas de morte segura”, nas palavras de Marco Aurélio. Em outro momento, retorna o magistrado a esse argumento: “não é dado invocar o direito à vida dos anencéfalos. Anencefalia e vida são termos antitéticos”. A discussão ser feita nesses termos aponta para um espaço dos possíveis que não contempla, quando do advento do julgado em questão, a possibilidade de acesso irrestrito ao aborto: este só é possível quando se entende o direito da mulher à privacidade, à autodeterminação e, por extensão, a seu próprio corpo, como o elemento que deve balizar o debate, dado que ela é uma vida já constituída e, portanto, que se encontra em um patamar diferente da vida em potencial.

Por outro lado, é possível verificar um avanço no sentido da afirmação dos direitos das mulheres quando, tratando da possibilidade de aproveitamento dos órgãos do feto anencéfalo, que, conforme argumentam opositores da possibilidade reivindicada, ficaria prejudicada com a interrupção de sua gestação, o ministro declara que “A mulher (...) deve ser tratada como um fim em si mesma”, e não como um meio, um “instrumento para geração de órgãos”.

Por fim, merece destaque a citação por parte da ministra Carmen Lúcia, por meio das palavras do Professor Daniel Sarmento, da crescente judicialização da política na história recente do Brasil. Além disso, a magistrada lembra que a interpretação das normas legais se torna mais complexa conforme evoluções de natureza científica, tecnológica, moral e social engendram questões novas, revelando algum entendimento da posição defendida por Bourdieu.

Portanto, é possível apontar elementos que favoreçam uma interpretação otimista, ao menos no momento de elaboração desse julgado, do espaço dos possíveis da questão dos direitos reprodutivos e do acesso aborto, e ao mesmo tempo, é nítida a limitação do debate por alguns ângulos de argumentação que não privilegiam a dignidade humana da mulher. Assim, é certo que o acórdão indica a necessidade de avanços significativos, mas não há razão para se olhar para o cenário de forma demasiado pessimista.

 

Helena de Battisti Almeida - 1.º ano - Matutino

 

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