A interessante discussão acerca dos limites do direito individual de uma
pessoa ganhou repercussão e entrou em pauta em muitos debates jurídicos depois
que no ano de 2004, a Confederação Nacional
dos Trabalhadores na Saúde entrou com uma Arguição de Descumprimento de
Preceito Fundamental (ADPF) no que tange a criminalização do aborto
de anencéfalos, pois a lei presente no código penal brasileiro coloca em
risco os direitos fundamentais da mãe. A priori deve-se entender quais são
as condições físicas e psíquicas de um anencéfao: a anencefalia
configura-se por uma má formação do tubo neural no feto logo nas primeiras da
gravidez, e como consequência dessa má formação o recém-nascido anencéfalo pode
nascer sem os principais sentidos como a audição, visão; ou até mesmo
inconsciente, sem a possibilidade de sentir dor ou reagir a toques, por
exemplo. Vale ressaltar que, grande parte das gestações nessas situações não
chegam ao final. Para o médico e professor de ginecologia da
Faculdade de Medicina de Jundiaí, Thomaz Gollop a interrupção da gestação de um
feto com anencefalia não pode ser considerada um aborto, já que não há
perspectiva de uma vida extrauterina do bebê. O que de fato acontece nesses
casos pode ser considerado apenas uma antecipação do parto, isenta de
criminalização.
Mediante a criminalização do aborto de anencéfalos,
o Estado obriga a mulher a manter uma gestação sem perspectiva de futuro, o que
afeta negativamente o psicológico da mesma e instrumentaliza seu corpo sem dar
a ela a possibilidade de escolha.
No momento em que a questão começa a ser julgada
pelo Supremo Tribunal Federal (STF) a comoção da população majoritariamente
religiosa no território nacional foi expressivamente contra o aborto mesmo
diante dessas condições delicadas. E apesar da opinião popular ser pertinente
em determinados assuntos, é um ato perigoso deixar que o direito se molde
segundo as pressões populares, o que Bourdieu chamou em sua obra de
instrumentalismo, no que tange o aborto de anencéfalos, permitir que a população
guiada por um extinto religioso interfira na decisão, seria imprudente para com
os direitos fundamentais da mulher. É importante lembrar que mesmo que nesse
caso o direito não pudesse agradar a opinião da maioria, o formalismo (visão do
direito como algo inerente à pressão popular) também deve ser evitado.
Segundo Bourdieu a luta simbólica entre os
doutrinadores (encarregados da elaboração teórica) e os operadores (associados aos
trabalhos dos magistrados, que realizam atos de jurisprudência e contribuem para
a construção jurídica) está representada metaforicamente pela dualidade de
opiniões dos ministros responsáveis pelo caso exposto. Os doutrinadores
representam aqueles que almejam seguir rigidamente o código penal e o que nele
está juridicamente previsto a respeito da criminalização do aborto, alegando
que a esfera judiciária não tem competência para ir de encontro com uma lei
legalmente vigente. Por outro lado, temos os operadores do direito, que alegam
a impossibilidade de se seguir leis retrogradas em certos aspectos, e que
através da jurisprudência modelam o direito ao contexto social atual,
encontrando no próprio código penal falhas para justificar a descriminalização
do aborto de anencéfalos. A disputa pelo direito de dizer o direito foi vencida
nesse caso pelos operadores. Destarte, em 2012 foi decidido a favor de
descriminalização do aborto de anencéfalo
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