O debate a respeito do aborto tem
como camada externa o embate entre religião e ciência, tendo em vista que sob a
perspectiva religiosa e cientifica existem diferentes definições do conceito de
inicio da vida, no entanto a análise do julgado da ADPF 54- pedida pela Confederação
Nacional dos Trabalhadores na Saúde, no qual a igreja Universal se
manifestou à favor da interrupção da gravidez nos casos de anencefalia, e alguns
poucos biólogos e médicos se manifestaram contra findar a gestão nestas mesma
condições, nos da indícios de que a camada interna da discussão do aborto
sempre é permeada por um problema mais profundo, arraigado e inviabilizado de
nossa sociedade: a desigualdade de gêneros.
As mulheres sofrem uma violência simbólica (e muitas
vezes física) da ideologia machista que é dominante na sociedade e crescem sem
ter liberdade de escolha sobre o seu corpo. A sexualidade feminina é trata como
objeto, servindo para a procriação ou satisfação da sexualidade masculina, consequentemente
a mulher não tem direito a escolha em prosseguir com uma gestação ou não.
Em nosso país o aborto é criminalizado, sendo considerado
um crime que atenta contra a vida. Na pratica a criminalização do aborto é mais
uma lei penal que só pune quem é pobre, a criminalização do aborto não impede
que milhares de abortos ocorram todos os anos, e que mulheres pobres - que não
tem acesso a nenhum apoio psicológico e médico - morram todos os dias em clínicas
clandestinas ou com remédios ilegais. A lei pune a mulher que comete o aborto,
como se não bastasse à punição que a mulheres recebem da família, da igreja, sociedade
e muitas vezes delas mesmas (afinal se trata de um procedimento fisicamente e
psicologicamente traumático), mascarando quais são as verdadeiras implicações
que envolvem o aborto.
A descriminalização e a legalização do aborto - que é criminalizado
no papel, mas não promove nenhum efeito pratico e banaliza o Direito Penal -
trariam mudanças na maneira como o aborto é tratado na sociedade, é possível pontuar
que a legalização transladaria o aborto da esfera penal para a esfera de
politicas pública de saúde, desse modo campanhas de prevenção seriam
intensificadas e caso uma gestação indesejada ocorresse, a mulher teria a
liberdade de escolha e a assistência médica necessária.
A decisão proferida recentemente pelo Ministro Barroso e
o julgamento da ADPF 54 (que permitiu a interrupção da gravidez nos casos
anencefalia) demostram que o Direito está sendo utilizado como instrumento de
emancipação, apesar do longo caminho para alcança a igualdade de gênero, essas decisões
são pequenos passos que os movimentos feministas conquistaram dentro dos
espaços dos possíveis, descritos na obra do pensador Pierre Bordieu.
Bordieu fala em sua obra da violência simbólica que um
grupo dominante submete outra classe, que analogamente pode ser observado na
criminalização do aborto, os valores dominantes (machismos e desigualdade de gênero
) da burguesia cristã e patriarcal são utilizados para submissão das classes
mais pobres e submissão das mulheres que sofrem a violência simbólica ao ter
seu direito de liberdade cerceado.
A criminalização do aborto – até em casos como da ADPF –
é um exemplo da instrumentalização do Direito descrito na obra de Bordieu, e
até os votos do julgado apresentam o formalismo e os limites impostos pelo
Direito supostamente neutro. No entanto é nos espaços do possível que a luta
feminista ganha visibilidade, pois Bordieu afirma que no texto
jurídico estão em jogo lutas, e a leitura ( hermenêutica ) é uma maneira de
apropriação da força simbólica que nele se encontra em estado potencial.
Essa força simbólica potencial se
encontra em elementos como a dignidade
da pessoa humana, o principio da legalidade,
a liberdade e autônima de vontade e o direito a saúde, presentes na
constituição e utilizados pelo STF para julgar procedente a ADPF.
No
entanto essa visão de Bourdie pode ser criticada por ser muito pessimista ao
limitar os ganhos dos movimentos sociais ao formalismo e instrumentalismo do
Direito. As decisões do STF a respeito das cotas, casamento homoafetivo e
aborto de anencefálicos, demostram que as mudanças sociais estão ocorrendo em
uma velocidade que não era prevista e aos poucos deslocam os limites dos
espaços do possível para lugares que não eram imaginados.
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