"feto anencéfalo é uma crisálida que jamais se transformará em borboleta, porque não alçará voo jamais” (Carlos Britto)
A grande
maioria das crianças que nascem sem cérebro morrem instantes depois. Além de
carregar no útero um bebê fadado a viver possivelmente por alguns minutos, as
mães ainda têm de lidar com a burocracia de registrar o nascimento e o óbito no
mesmo dia. A partir dessa premissa, o Supremo Tribunal
Federal, no ano de 2012, jugou como procedente que um feto com anencefalia- uma
má formação do tubo neural, caracterizada pela ausência parcial do encéfalo e
da calota craniana, proveniente de defeito no fechamento do tubo neural nas
primeiras semanas da formação embrionária- é natimorto. Todas as entidades
médicas e científicas que compareceram a audiência convocada pelo ministro Marco
Aurélio, confirmaram que o diagnóstico é 100% certo, a letalidade ocorre em
100% dos casos. Portanto, a interrupção da gravidez nesses casos passou a ser
considerada legal.
Desse modo, a legalização
de abortos de anencefálicos juntou-se a dois outros casos aonde o aborto não é
considerado um crime no Brasil: quando a gestação implica riscos de vida a
mulher e quando a gestação é decorrente de estupro. A partir dessa constatação,
anteriormente a decisão, o código penal de 1940 não discorria sobre os casos de
anencefalia, dessa forma a gestante entrava com uma ação na justiça para poder
retirar o feto e contava com a interpretação dos juízes. Dito isso, os juristas
dispunham do poder de interpretação das fórmulas jurídicas gerando diversos
casos com decisões diferentes. Dessa forma, considerando o pensamento de
Bourdieu, com o conteúdo prático em lei, o trabalho da racionalização confere eficácia
simbólica aonde a instrumentalização descreve que o direito não pode servir de
instrumento para classe dominante conservadora.
Nesse sentido Bourdieu
trata da relevância da divisão do trabalho jurídico enquanto atividade de
interpretação filosófica e literária do jurista. No caso, fica evidente a
atividade hermenêutica realizada pelos ministros, que expandiram a efetividade
e o alcance da norma. Podemos perceber que a atuação dos ministros se deu
dentro do "espaço dos possíveis". Tal decisão, além de envolver o
campo jurídico, envolveu o campo da ciência e dos dogmas.
A permanência do feto
anômalo no útero da mãe se mostra potencialmente perigosa, podendo gerar danos
à saúde física e mental da gestante. Considerando também o princípio da
dignidade da pessoa humana, não se deve impor à mulher o dever de carregar por
nove meses um feto que sabe, com plenitude de certeza, não sobreviverá,
causando à gestante dor, angústia e frustração, resultando em violência às
vertentes da dignidade humana – a física, a moral e a psicológica - e em
cerceio à liberdade e autonomia da vontade, além de colocar em risco a saúde,
tal como proclamada pela Organização Mundial da Saúde. Sendo assim, não deve competir
ao Estado a decisão da realização do aborto. Bourdieu também afirma que a
sociedade está permeada por conflitos constantes em busca de poder e que para
garantir a manutenção do poder, seus detentores buscariam camuflar seus
interesses de forma que aparentassem ser reflexo dos anseios da sociedade como
um todo, através da violência simbólica. A figuração desses interesses como
coletivos serve de justificativa para construções ideológicas.
É neste sentido que entra a pretensão
de enquadrar o aborto de anencefálicos como crime previsto no código penal,
exemplificando violência simbólica, visto que os detentores do poder utilizavam
de preceitos religiosos para construir um consenso sobre a realidade, ignorando
a laicidade do Estado. Dessa forma, é nesses momentos que o Direito, segundo
Bourdieu deve ingressar como agente definidor e regulador, marcado pela
neutralidade e universalidade, garantindo os direitos fundamentais em situações
de contrassenso, atendendo os valores democráticos utilizando-se da autonomia
relativa que lhe é legitimada.
Jéssica Xavier Pereira
1° ano Noturno
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