Comte
e a infame herança do positivismo jurídico
Não
é preciso ser nenhum Kelsen para perceber, a partir de breve lida nas duas
liminares, que aquela determinada pelo juiz da 14ª vara cível, na comarca de
São Paulo, é fortemente embasada por argumentação positivista. A proibição de
manifestações sociais em detrimento à salvaguarda da ordem é um traço
característico e fundamental da filosofia positivista, fato este que será
discorrido subsequentemente.
Uma
das maiores confluências da liminar em trato, com o positivismo de Comte, é o
fato de ambas serem avessas a quaisquer perturbações da estática social. Ambas
são absolutamente desfavoráveis à afetação da ordem estabelecida até então.
Nesse sentido, a hermenêutica do juiz em questão suprime de modo escrachado o
“direito à livre manifestação” conflitando-a, a meu ver de maneira descabida,
com outros direitos constitucionais como o direito a propriedade e a liberdade
do trabalho. Se todos os direitos, de fato tivessem a mesma importância,
segundo o que o próprio juiz apresenta, nenhum deles poderia ser refutado, inclusive
o direito à manifestação, o que não foi respeitado nesse caso. Isso se dá,
sobretudo, em proteção à uma “suposta ordem” que deve ser mantida, sustentada
pela argumentação do juiz de que o espaço seria “impróprio à manifestação”. Sendo assim, a partir de um viés jus-positivista,
impõe-se a segregação do espaço do shopping . Nada mais é que a tentativa da
manutenção deste como espaço estéril, de predominância branca e burguesa, e do
afastamento das camadas marginalizadas que representam risco a manutenção do status
quo, além de retratarem explicitamente a problemática da desigualdade no espaço
de entretenimento e consumo das elites. Por fim, uma ação alinhada ao ideal
positivista antirrevolucionário, estático, e de segregação das massas menos
favorecidas.
Não
obstante, é preciso reconhecer as limitações do positivismo de Comte;
limitações essas que ao adentrarem ao campo do direito promovem decisões
retrógradas, injustas e anacrônicas em vista da problemática social atual.
Comte buscava uma ciência que abarcasse a totalidade social. De maneira
sintética, buscava um enquadramento total da sociedade, para o
“progresso”. Pois é aqui que começam os
problemas: como seria possível formular conceitos únicos que abriguem tamanha
diversidade de contextos sociais? Como estabelecer conceitos gerais de regência
social em vista da discrepância econômica? Da desigualdade? A resposta é
simples: inviável. Desse modo, a tentativa de imposição legal para o fato em
questão, é o exemplo claro de como injustiças são promovidas à luz do
positivismo cego.
Ademais,
o positivismo foi historicamente usado na construção de arquétipos racistas
dentro os quais se desenvolvia a ideia de que algumas sociedades estavam em
escala evolutiva inferior a outras. Essa foi a ideologia preponderante em
meados do século dezenove na Europa. De maneira análoga, a privação do espaço
do shopping a parcela marginalizada é o microcosmo análogo do racismo praticado
pelas nações industrializadas no passado à África, atualmente praticado pelas
elites aos marginalizados.
Por
conseguinte, é possível observar que o positivismo de Comte perdura até os dias
atuais. O exemplo tratado pela liminar, é somente a pequena parcela jurídica
dentre uma amplitude muito maior de ramificações para as quais as ideias de
Comte se desdobraram.
Roberto Renan Belozo – 1º direito noturno
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