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terça-feira, 1 de setembro de 2020

A Ambivalência da Linguagem: Na Corda Bamba da Opressão e da Liberdade


 

O sociólogo e jurista alemão, Max Weber, baseia seus estudos para a fundação de uma ciência da Sociologia nos recursos metodológicos de tipo ideal e ação social. Dessa maneira, temos que tipo ideal, como já mencionado, é apenas um recurso metodológico que se diluirá e será descartado quando a análise social propriamente dita tiver início. Com isso, tipo ideal é um esboço com as principais características e variações das ações sociais, dos valores que as movem e de seus sentidos, sendo um referencial para a análise da sociedade. Já a ação social, equivale às ações que cada indivíduo realiza no modo de condução de sua vida, de modo que todas são movidas por valores e orientadas em relação aos outros indivíduos, buscando sua aceitação ou uma contradição, um debate, estabelecendo o que Weber chama de relação social. Para Weber, é a cultura, ou seja, os valores, a moral, os condicionamentos e determinações do econômico, e não apenas as relações de produção, como para Karl Marx e Friedrich Engels, nem tampouco a estática e a dinâmica, como para Augusto Comte, que explica a ação dos agentes sociais.

Para Max Weber, o indivíduo carrega consigo as representações do coletivo, evidenciando como a cultura de uma sociedade se expressa em um indivíduo por meio de sua ação social. Um exemplo disso foram os comentários absurdos desencadeados pela divulgação da realização de aborto por uma criança capixaba de 10 anos que sofria abusos sexuais desde os 6 anos de idade. Os mesmos evidenciam como essa consciência social conservadora está presente no Brasil, como essa cultura social autoritária e patriarcal se faz dominante nas manifestações individuais realizadas em tais comentários (como, por exemplo, os publicados nas redes sociais por uma professora da rede estadual do estado de São Paulo: “já tinha vida sexual há quatro anos com esse homem. Deve ter sido bem paga” e “crianças se defendem chorando pra mãe, esta menina nunca chorou por quê?”[1]), ou seja, de como essa consciência conservadora pode ser observada na ação social de tais indivíduos. O papel da sociologia é o de compreender o motivo pelo qual as pessoas pensam dessa forma e, a partir daí, fornecer elementos para que políticas públicas e sociais consigam restringir esse pensamento a um círculo cada vez mais privado e evitar que essa forma de pensar se transforme em uma ação concreta prejudicial ao bom funcionamento da sociedade. Assim, a função do direito seria exatamente essa: interferir sobre essa ação e impedir que a mesma vá de encontro aos direitos previstos nos códigos legais, como observado no exemplo acima descrito, permitindo que o direito previsto no artigo 128 do Decreto Lei nº 2.848, de 07 de dezembro de 1940, de legalidade do aborto em casos de estupro fosse efetivamente realizado apesar das manifestações contrárias ao mesmo.

Weber, ao tratar de direito, poder e dominação, assume que não são apenas expressões das relações de produção e das relações sociais advindas do capitalismo por meio do domínio de uma classe sobre a outra, ele evidencia o exercício do poder em todas as relações sociais, de modo que podem ocorrer entre sujeitos de uma mesma classe, que estabelecem, inclusive, laços de fraternidade ou de solidariedade. Dessa maneira, observamos uma superação da perspectiva marxista de dominação, tornando-a mais abrangente. Podemos observar, também, que o poder pode ser imposto por meio da fala e isso é evidenciado no caso da inacessibilidade da linguagem jurídica, que age como um símbolo de poder, sendo uma forma de distinção. Nesse sentido, observamos que atualmente, a dominação não está envolvida com uma arma, um porrete ou um chicote, mas sim com a linguagem, seja limitando o poder de fala de outra pessoa, seja mostrando que possui mais conhecimento e, portanto, é superior aos outros indivíduos, que devem a esse se submeterem. A comunicação, a linguagem e a própria mobilização do conhecimento são, assim, formas que expressam a violência simbólica apresentada por Pierre Bourdieu, o poder e a dominação. É nesse sentido que se justifica a imagem apresentada no início desse texto, evidenciando a mudança na forma de dominação, antes exercida por meio da coerção física e, atualmente, por meio da linguagem e do conhecimento. Ainda nesse contexto, observamos o uso de recursos sociais e culturais como forma de obtenção de status, distinção e atenção.

Ao entendermos a linguagem como forma de dominação, percebemos a importância de nos posicionarmos a fim de evitar a legitimidade da mesma. Assim, temos que muitas vezes, as mulheres se calam diante de situações de machismo e acabam se submetendo a ele. Percebemos que, ao mesmo tempo que a linguagem aprisiona, ela liberta e que nós, mulheres, não podemos nos deixar calar, não podemos ter nossa voz retirada de nós, pois essa (a voz) é o nosso poder contra a dominação do patriarcado, que é tão facilmente observada na sociedade do século XXI. Nesse sentido, destaco o papel da Disney, que ao filmar o live-action de Aladdin, acrescentou uma nova música ao repertório, “Speechless”, cantada por Naomi Scott, atriz que incorporou Jasmine, e evidencia justamente essa tentativa de domínio por meio da supressão da voz das mulheres e como não podemos mais aceitar e nos calar diante disso[2].

O poder é essa imposição de vontades, porém ela não acontece sem resistência alguma, ou seja, para Weber, não existe dominação plena. A dominação vai representar a incidência de estímulos externos sobre o modo de conduzir a vida, não somente relacionado com o modo de produção capitalista, mas do ponto de vista do patriarcado. E a legitimidade é justamente a  possibilidade de aceitação dessa inflexão externa sobre o modo dos indivíduos de conduzirem as suas vidas, ou seja, a aceitação da dominação como algo válido. Ainda na situação do patriarcado, temos que o mesmo está tão incorporado na sociedade atual que nós, mulheres, o perpetuamos sem, às vezes, percebermos. Podemos observar como o mesmo está incrustado em nossa cultura ao avaliarmos, por exemplo, a música “Barbie Girl”, cantada e apresentada para a grande parte das meninas desde sua infância, e isso acaba por acarretar na naturalização do machismo, da dominação e submissão das mulheres aos homens[3]. Apesar disso, as manifestações contrárias ao histórico domínio do patriarcado passaram a ganhar uma maior proporção nessa última década, evidenciando, como Weber defendeu, que não existem dominações plenas, sempre vão existir movimentos e revoltas contrárias. Nesse sentido, podemos observar como a música “Not Your Barbie Girl” tenta exatamente desconstruir a imagem feminina, passada às meninas desde pequenas com a música “Barbie Girl”, da mulher como um objeto, como algo destinado ao uso fruitivo dos homens e traçar um caminho para o empoderamento feminino e a desobjetificação da mulher, livrando-a das amarras da dominação masculina[4].

 Júlia Martins Amaral - 1º Ano - Direito Matutino



[1] Professora é demitida após fazer ataques à menina de 10 anos vítima de estupro. Jornal Estadão Mato Grosso, Cuiabá, 20 ago. 2020. Disponível em: https://estadaomatogrosso.com.br/brasil/professora-e-demitida-apos-fazer-ataques-a-menina-de-10-anos-vitima-de-estupro/11003. Acesso em: 31 ago. 2020.

[2] SCOTT, Naomi. Speechless. Walt Disney Records, 2019. 3:26 minutos. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=mw5VIEIvuMI.

But I won’t cry / And I won’t start to crumble / Whenever they try / To shut me or cut me down / I won’t be silenced / You can’t keep me quiet / Won’t trumble when you try it / All I know is i won’t go speechless / ‘Cause I’ll breathe / When they try to suffocate me / Don’t you underestimate me / ‘Cause I know that I won’t go speechless / (...) / Stay in your place / Better seen and not heard / But now that story is ending” [Mas eu não vou chorar / E eu não vou começar a desmoronar / Sempre que tentarem / Me calar ou me cortar / Eu não serei silenciada / Você não pode me manter quieta / Não desmoronarei quando você tentar / Tudo que sei é que não serei silenciada / Porque eu respiro / Quando eles tentam me sufocar / Não me subestime / Porque eu não serei silenciada / (...) / Fique em seu lugar / Melhor ser vista e não escutada / Mas agora essa história está terminando].

[3] AQUA. Barbie Girl. Dirigido por: Peter Stenbæk & Peder Pedersen. 2010. 3:21 minutos. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=ZyhrYis509A.

I’m a Barbie Girl in a Barbie World / Life in plastic, it’s fantastic / You can brush my hair, undress me everywhere / Imagination, life is your creation” [Eu sou uma garota Barbie em um Mundo Barbie / A vida em plástico, é fantástica / Você pode escovar meus cabelos, me despir em todo lugar / Use a imaginação, a vida é sua criação].

[4] MAX, Ava. Not Your Barbie Girl. 2018. 3:06 minutos. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=dvLm14-zDM8.

Not your Barbie Girl, I’m living in my own world / I ain’t plastic, call me classic / You can’t touch me there, you can’t touch my body / Unless I say so, ain’t your Barbie, no” [Não sou sua Barbie, estou vivendo no meu próprio mundo / Eu não sou de plástico, me chame de clássica / Você não pode me tocar lá, você não pode tocar meu corpo / A menos que eu diga, não sou sua Barbie, não].

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