Nem o
instrumentalismo e nem o funcionalismo das visões kelseniana e marxista foram
capazes de completar o sentido do ordenamento jurídico. Basear-se
exclusivamente num universo positivo rígido ou em um materialismo histórico que
apenas indica o direito como objeto de manutenção de poder. O direito deve ser
pensado além dessas duas perspectivas, considerando o corpus que se dá através
da teoria e da prática e, hodiernamente, da interpretação dada pelos sujeitos
de direito.
Essa
interpretação concerne à linguagem jurídica impessoal e neutra utilizada para
embasar decisões e normas jurídicas. Além da interpretação, a luta simbólica
que se revela entre o conteúdo prático da lei é resultado de uma luta entre os
profissionais dotados de competência técnica e social, gerando desigualdade de
mobilizações.
Apesar
de existirem diversas interpretações, estas são monopolizadas pelo poder
judicial, já que o direito produz efeitos por si só e faz o mundo social, sem
deixar de lembrar que é feito por este. Dessa forma, o trabalho jurídico se
manifesta na subtração das normas de uma ocasião particular, fixando uma
decisão modelo. Pode-se considerar, portanto, as decisões judiciais como um
mecanismo de universalização que exerce dominação simbólica, através de regras
e princípios oficiais.
Para que o direito cumpra seu papel de exemplo ele
deve rejeitar a conceito de ser constituído como instrumento de dominação e
também como construção alheia à pressão social. O processo histórico, o
conflito de competências e as obras jurídicas que delimitam o espaço dos
possíveis são essenciais para a formação do direito concreto. Assim, a
interpretação da ordem jurídica possui certos limites mediante a realidade.
Além disso, os
doutrinadores e os operadores do direito
são de suma importância para que se entenda esse conflito de competências
estabelecido por Bordieu. Um sistema que se entregue apenas aos doutrinadores
corre o risco de se fechar de maneira que passe a deixar de ser influenciado
pelas realidades e ocasiões concretas.
O julgamento de temas
conflitantes na sociedade exige o trabalho conjunto desses doutrinadores e dos
operadores do direito. A aplicação simplesmente do campo teórico à situação
particularizada exprime aquela lei universal e impessoal, desprovida de
peculiaridades necessárias e apresentadas pela realidade. Dessa forma, ao discutir-se
judicialmente a questão do aborto de fetos anencéfalos, a simples aplicação e
subsunção da lei positivada não é suficiente para a solução do conflito. A
oposição entre os votos dos ministros pauta-se também nessa competência do
Judiciário decidir caso que ainda não foi transformado pela lei, ou, conforme
aponta Bordieu, o direito não se deixou modificar pela prática.
Além disso, a discussão
desses doutrinadores e operadores, utilizando dessa interpretação e linguagem
estranha à maioria que seria atingida pela decisão judicial que previsse a
procedência do aborto, não é eficaz e não alcança com clareza as famílias e os
indivíduos que carecem dessa decisão em específico. Invocar o ordenamento
jurídico e não a realidade social nem sempre é a melhor solução, mas sim uma
solução kelseniana, a qual aqui refuta-se.
A competência do legislativo
e do judiciário aglutinam-se mediante tais casos, que necessitam da junção
entre os operadores e doutrinadores, para que a interpretação dada à realidade
corresponda aquilo que o direito deve ser, histórico e conforme a realidade.
Heloise Moraes Souza - Diurno
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