Naquela
manhã, acordou sem pressa. Escovou os mesmos dentes, lavou o mesmo
rosto, e entre enxaguada ou outra viu pelo espelho o reflexo da
passagem do tempo: as rugas, a barba embranquecida e o retrato da
falta do ócio, coisa incutida pela criação, coisa com o que não
se discute, coisa que... Oras, era coisa dita e feita, tal
dizia seu pai antes de “morrer pela pátria” na Segunda Guerra
Mundial, defendendo sua Itália fascista.
Contra
toda e qualquer mudança que visse, era um desses Joões ou Josés
que nunca haviam saído da risca que certamente lhe era verdade desde
a infância. Um copo de leite e dois pães desde os dez anos; óculos
de seis graus desde os quinze; um lugar no assento de motorista, do
mesmo ônibus na linha principal da pequena cidade – isso desde os
vinte. Não que lhe parecesse o melhor trabalho do mundo, porque
nunca foi, mas pagava as contas e até permitia sua sagrada taça de
vinho do sábado, quase um ritual. Talvez o comodismo e a aversão à
novidade o fizessem pensar assim.
Completava
sessenta naquele dia. Odiava também aniversários. Na verdade,
contava nos dedos de uma mão as coisas por que nutria algum prazer,
e o vinho do sábado era um deles. Não amou, não se casou sequer
por conveniência, não teve filhos e passava longe de cachorros nas
ruas, mas sem acreditar que ignorá-los fizesse algum mal à
sociedade. Não lia, livros ou revistas, assistia a programas ruins
da TV e absorvia, sem digerir, qualquer informação proferida em
qualquer um dos canais de grande audiência. Votava desconhecendo,
conhecia o raso e rasas eram suas esperanças numa nação que,
segundo algumas fontes, estava perdida.
Se
soubesse de Sociologia, talvez se entendesse por certos traços de
Durkheim e seu Fato Social. Talvez entendesse por que não faltava às
missas, talvez entendesse por que trabalhava, talvez até explicasse
o por quê de aplaudir os “justiceiros” ante a “falta de
aplicação da Justiça no Brasil”, por que mantinha seus “pequenos
preconceitos” diários e dormia sereno para acordar disposto no dia
seguinte, afinal, todos têm sua função social. Brindou a um dos
homens que amarrou um jovem ao poste, ou que linchou uma mulher em
alguma cidade por aí... Sequer saberia onde pois, bem, não lhe
importavam as circunstâncias desde que a conclusão fosse a ideal,
sob seu ponto de vista.
“Bandido
bom é bandido morto”, dizia, e acabou por ouvir isso no fim
daquele dia, quando voltava à sua casa, de um rapaz que o sentou ao
meio-fio e lhe tapou a boca com uma flanela, cobrando-lhe um ato que,
embora nunca houvesse cometido, julgara outras tantas vezes pela TV.
Tentava gritar a quem lá estivesse que haviam pegado o homem errado,
mas não faria diferença se “não importavam as circunstâncias
desde que a conclusão fosse a ideal”.
E
talvez ele tivesse aplaudido também uma cena dessas... Contudo,
naquela noite, não foi audiência do jornal das oito.
Nenhum comentário:
Postar um comentário