São Bernardo do Campo, 24 de dezembro de 1996
Querido diário
Hoje é a primeira vez que estou escrevendo algo para um
diário, preciso relatar um pouco da minha vida já que os documentários e
grandes biografias são de pessoas poderosas, para nós, pobres, sobra o relato
das mazelas no íntimo dessa folha de papel.
Bem, meu nome é Josias da Costa e Silva, nasci em 5 de maio de 1963 no interior
de Minas Gerais, perto de Governador Valadares, sou filho de vaqueiro e dona de
casa, tinha 22 irmãos, hoje são só 15, os outros morreram (alguns por fome,
outros matados). Ainda muito novo sai de casa, estava cansado das agressões que
sofria do meu pai, cansado da fome e da iminência da morte.
Vim para grande cidade do Brasil no dia 13 de junho de 1985,
São Paulo, mas a grandeza e beleza de suas construções se limitavam ao centro,
porque a periferia não era melhor que o inferno de onde vim, fui morar em
Paraisópolis e a fome me seguiu. Vivi lá por 5 ou 6 anos, sempre trabalhei
muito, eram de 8 a 10 horas de trabalho, sem contar as outras 2 horas de ida e
de volta, mas nunca tive aquela estabilidade que me pregavam. Eu pulava de
emprego em emprego, mas nunca trabalhava por muito tempo, eles precisavam
cortar gastos com a crise, para eles a minha fome era “consequência”.
Depois vim para São Bernardo, a metalurgia era a única opção
para um homem educado pela vida, sem nunca ter realmente estado na escola. Meu
sonho era ser professor, mas infelizmente não tive a oportunidade. Minha vida
ainda é só trabalho, tenho que comprar as coisas necessárias para viver e, às
vezes quando sobra (quase nunca), um pouco mais.
Por que eu resolvi escrever um diário? Bem, primeiramente é
porque eu preciso desabafar, as pessoas quase não se falam, os dias atuais só têm
relacionamentos superficiais e desejo por ter, todo dia eu vejo gente brigando
por um item novo, na moda, lembro de quando vi, logo depois de chegar em São
Paulo, uma moça brava numa daquelas lojas de rico porque a mãe não queria dar
um sapato novo para ela, eu estava sentado em um banco em frente lutando contra
a fome.
Segundamente, para relatar meu dia a dia pela visão de um
tal de Marx que meu filho me apresentou, queria ter mais tempo com meu bebê,
mas preciso trabalhar, ele não pode sofrer o que eu sofro e se eu trabalhar
menos vou desagradar o patrão...perdão, me perdi, Marx, né? Ele parecia ser
muito gente boa, meu filho falava coisas sobre ele e era como se estivesse
falando sobre hoje em dia, sabe? aquele negócio do “materialismo”, como a
história se constitui pelo consumo e que a consciência e a religião podem
distinguir os homens dos animais, mas eles já fazem essa diferenciação por
produzirem os próprios “meios de existência”. Ele me disse de um outro rapaz que
o Marx criticava, um tal de Hegel, mas eu não o entendi muito bem, ele fazia
“fraseologia”, o que é para mim uma expressão chique para falar difícil.
O Marx me fez perceber que eu não quero que meu filho fique
rico e possa comprar tudo que deseja, eu quero que ele seja diferente, mas
duvido que isso aconteça. Ele vive em um mundo que consome cada vez mais,
sempre novas tecnologias, novos brinquedos, tênis novos, óculos novos, bolsa
nova, carro novo...é triste saber que, como cantava Elis Regina, meu filho
continuará sendo como seus pais.
Na metalurgia a gente usa muita água para resfriar as peças
e, como ela, a realidade é instável, corre pelas nossas mãos, é fluída. Nada é
firme, nem o emprego, nem o amor, nem as relações.
Marx estava certo sobre esse negócio de concepção
materialista, nós consumimos para dar meios de decorrer a história, meu medo é
pensar até quando será assim? Eu sei que meu filho não verá o fim disso, nem os
filhos dele, mas tenho esperança de que um dia isso acabe, algum dia nos libertaremos
das algemas do consumo e da dominação, deixando de estar à mercê dos ricos.
PS.: NÃO POSSO LEVAR ESSE DIÁRIO PRO
TRABALHO, SE MEU PATRÃO DESCOBRIR EU VOU PRA RUA E, ATÉ NÃO ACABARMOS COM A
DOMINAÇÃO, PRECISO SER BOM FUNCIONÁRIO.
GABRIEL RIGONATO - 1º PERÍODO NOTURNO
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