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domingo, 22 de agosto de 2021

O DIÁRIO DE UM PROLETÁRIO: INTERPRETAÇÃO MATERIALISTA DE UMA REALIDADE ETÉREA

 

    São Bernardo do Campo, 24 de dezembro de 1996

 

    Querido diário

 

    Hoje é a primeira vez que estou escrevendo algo para um diário, preciso relatar um pouco da minha vida já que os documentários e grandes biografias são de pessoas poderosas, para nós, pobres, sobra o relato das mazelas no íntimo dessa folha de papel.

    Bem, meu nome é Josias da Costa e Silva, nasci em 5 de maio de 1963 no interior de Minas Gerais, perto de Governador Valadares, sou filho de vaqueiro e dona de casa, tinha 22 irmãos, hoje são só 15, os outros morreram (alguns por fome, outros matados). Ainda muito novo sai de casa, estava cansado das agressões que sofria do meu pai, cansado da fome e da iminência da morte.

    Vim para grande cidade do Brasil no dia 13 de junho de 1985, São Paulo, mas a grandeza e beleza de suas construções se limitavam ao centro, porque a periferia não era melhor que o inferno de onde vim, fui morar em Paraisópolis e a fome me seguiu. Vivi lá por 5 ou 6 anos, sempre trabalhei muito, eram de 8 a 10 horas de trabalho, sem contar as outras 2 horas de ida e de volta, mas nunca tive aquela estabilidade que me pregavam. Eu pulava de emprego em emprego, mas nunca trabalhava por muito tempo, eles precisavam cortar gastos com a crise, para eles a minha fome era “consequência”.

    Depois vim para São Bernardo, a metalurgia era a única opção para um homem educado pela vida, sem nunca ter realmente estado na escola. Meu sonho era ser professor, mas infelizmente não tive a oportunidade. Minha vida ainda é só trabalho, tenho que comprar as coisas necessárias para viver e, às vezes quando sobra (quase nunca), um pouco mais.

    Por que eu resolvi escrever um diário? Bem, primeiramente é porque eu preciso desabafar, as pessoas quase não se falam, os dias atuais só têm relacionamentos superficiais e desejo por ter, todo dia eu vejo gente brigando por um item novo, na moda, lembro de quando vi, logo depois de chegar em São Paulo, uma moça brava numa daquelas lojas de rico porque a mãe não queria dar um sapato novo para ela, eu estava sentado em um banco em frente lutando contra a fome.

    Segundamente, para relatar meu dia a dia pela visão de um tal de Marx que meu filho me apresentou, queria ter mais tempo com meu bebê, mas preciso trabalhar, ele não pode sofrer o que eu sofro e se eu trabalhar menos vou desagradar o patrão...perdão, me perdi, Marx, né? Ele parecia ser muito gente boa, meu filho falava coisas sobre ele e era como se estivesse falando sobre hoje em dia, sabe? aquele negócio do “materialismo”, como a história se constitui pelo consumo e que a consciência e a religião podem distinguir os homens dos animais, mas eles já fazem essa diferenciação por produzirem os próprios “meios de existência”. Ele me disse de um outro rapaz que o Marx criticava, um tal de Hegel, mas eu não o entendi muito bem, ele fazia “fraseologia”, o que é para mim uma expressão chique para falar difícil.

    O Marx me fez perceber que eu não quero que meu filho fique rico e possa comprar tudo que deseja, eu quero que ele seja diferente, mas duvido que isso aconteça. Ele vive em um mundo que consome cada vez mais, sempre novas tecnologias, novos brinquedos, tênis novos, óculos novos, bolsa nova, carro novo...é triste saber que, como cantava Elis Regina, meu filho continuará sendo como seus pais.

    Na metalurgia a gente usa muita água para resfriar as peças e, como ela, a realidade é instável, corre pelas nossas mãos, é fluída. Nada é firme, nem o emprego, nem o amor, nem as relações.

    Marx estava certo sobre esse negócio de concepção materialista, nós consumimos para dar meios de decorrer a história, meu medo é pensar até quando será assim? Eu sei que meu filho não verá o fim disso, nem os filhos dele, mas tenho esperança de que um dia isso acabe, algum dia nos libertaremos das algemas do consumo e da dominação, deixando de estar à mercê dos ricos.

 

PS.: NÃO POSSO LEVAR ESSE DIÁRIO PRO TRABALHO, SE MEU PATRÃO DESCOBRIR EU VOU PRA RUA E, ATÉ NÃO ACABARMOS COM A DOMINAÇÃO, PRECISO SER BOM FUNCIONÁRIO.


GABRIEL RIGONATO - 1º PERÍODO NOTURNO

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