Há quem intitule o período que vivemos hoje como pós-contemporâneo. Independente do nome, esta é a era a que se atribui a imagem da liberdade, da comunicação sem fronteiras, da tecnologia, da pura racionalidade. É o tempo das mil e uma possibilidades. É a manifestação da modernidade. Ah, a modernidade! Ser moderno é deixar o novo tomar conta e romper com o rigor das tradições.
Durkheim já dizia que esse tempo chegaria. Mas será que de fato chegou? Os fatos dizem que não. Os homens ainda são fortemente movidos por aspectos que extrapolam o campo da razão, da praticidade e da objetividade. A religião, a superstição e as paixões humanas em geral ainda perpassam o agir. Não é a razão que faz com que tantos tenham receio de passar debaixo de uma escada, quebrar um espelho, comer manga com leite ou deixar os sapatos jogados com a sola virada para cima. Tampouco é a razão que faz com que tantos caminhem 80 quilômetros rumo à Romaria ou que subam uma escadaria de joelhos. A razão não é absoluta em nós.
Durkheim acreditava que as sociedades modernas seriam guiadas por impulsos dirigidos, desvinculados da cegueira passional. A consciência coletiva -- o nome atribuído à referência moral de uma sociedade, o conjunto de crenças comuns à média da população, formando hábitos, costumes e pensamentos padronizados com reações coletivas – passaria a ocupar espaço pouco significativo frente à racionalidade que marcaria as sociedades complexas. Mas a consciência coletiva é produto histórico particular de cada sociedade e algo assim não se esvaia com o tempo, está arraigada nos traços que delineiam a coletividade e não há inovação que a faça minguar.
Além disso, Durkheim ignorou um aspecto importantíssimo: o homem é um ser cultural. A emoção também nos move e ela é controlável apenas até certo ponto. O homem interpreta o mundo que o rodeia e responde ao que vê, nem sempre conscientemente. Ele busca respostas que a razão não encontra, o que o faz se apegar a crenças diversas. Por isso, a humanidade não pode, por natureza, alcançar a racionalidade absoluta. O homem é, antes de racional, um animal, e, o sendo, carrega instintos, que são apenas parcialmente controlados pela razão.
É claro que cada contexto cede seus contornos às tradições, que sobrevivem ao tempo acompanhando-o, isto é, incorporando novidades. O problema é que o inverso também ocorre.
O que pretendo dizer é que, protegidos sobre o discurso da modernidade, contraditoriamente, grupos sociais, em muitos momentos, resgatam o passado primitivo da nossa sociedade. Digo primitivo me apropriando de termos durkheimianos, segundo o qual, nas sociedades menos complexas, a própria coletividade, homogeneizada por padrões comportamentais, aplica uma pena moral ao indivíduo infrator das normas que sustentam o equilíbrio social e conferem coesão ao grupo.
O que ocorre é que na contemporaneidade a sociedade se complexibilizou e adquiriu maior grau de heterogeneidade, suportando maior diversidade e maior manifestação das consciências individuais (valores particulares a cada um), sem que isso comprometa a ordem ou o equilíbrio social. A tradição sobrevive, mas ela não é uma só. Cada grupo social se identifica por um padrão de valores, e as diferenças se esbarram por aí. Convivem, ou ao menos deveriam conviver. Dessa maneira, chego a um ponto crucial: o embate entre a intolerância e a liberalidade. O fato é que, como já havia começado a dizer, certos grupos não lidam bem com a heterogeneidade atual, eles agem no sentido de, como nas sociedades primitivas, exigir do todo o mesmo comportamento. Exigem do outro a resposta a valores que não lhe pertencem e reagem violentamente diante da negativa, da contradição. Os fatos falam por si só: “Evangelizador tenta matar travesti por causa da religião”, “Três adolescentes agridem dois jovens por achar que eram homossexuais”, “Intolerância religiosa afeta auto-estima e dificulta aprendizagem”, “Restrição a religiões cresce na maioria dos países”. Manchetes como essas se multiplicam e configuram uma realidade que parece muito distante daquela que é vinculada ao ideal da modernidade, da liberalidade, da racionalidade... Sim, as aparências enganam.
Tomo como fato que a modernidade, enquanto advento da inovação, não existe e nem sequer sobrevive sem a tradição, que representa a referência moral de que necessita o homem para viver e conviver com o outro. Mas a razão está aí para ser usada. É preciso que cada um o faça para compreender que as diferenças existem e devem ser respeitadas. A beleza da racionalidade humana está em encontrar uma diversidade de respostas para uma mesma questão. E uma não anula a outra, são apenas olhares de diferentes pontos desse universo infinito. E como é diverso. E como é bonito.
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