A ideia de um contrato criar uma liberdade pode parecer paradoxal inicialmente, tendo em vista que é pressuposto de qualquer acordo o compromisso entre as partes acordantes. Entende-se esse compromisso como uma relação de dependência, da qual, nenhum dos lados poderá se omitir livremente. O contrato é a garantia do cumprimento de uma obrigação. Porém, se nos aprofundarmos no estudo dos fundamentos e das intenções de um contrato, veremos que além de real, esta afirmação é totalmente lógica. Tomando por base o texto de Max Weber, de seu livro “Economia e Sociedade”, em que se analisam o que o autor chama de “formas de criação dos direitos subjetivos”, poderemos discutir e analisar o tema proposto. Todavia, antes de entrar diretamente no debate, vale destacar algo dito por Weber em seu texto: “Quem tem, de fato, poder de disposição sobre uma coisa ou pessoa obtém, mediante a garantia jurídica, segurança específica quanto à perduração deste poder, e aquele a quem foi prometida alguma coisa obtém segurança de que a promessa seja cumprida. Estas são, de fato, as relações mais elementares entre o direito e a economia” (Weber, Economia e Sociedade, v.II, p.14).
Primeiramente, aproveito alguns exemplos de contratos primitivos, dados por Weber, comentando-os, a fim de compreender melhor a natureza do objeto discutido. Citando as antigas civilizações chinesa, indiana e germânica, Weber mostra não haver preocupação com o ressarcimento da dívida feita, mas com o respeito a um laço fortíssimo de confiança existente quando estabelecido o acordo. Quebrar um contrato era romper dolorosamente um vínculo de confiança. Tratava-se de uma ofensa a dignidade, a moral do indivíduo. Na China, muitas vezes, o credor se suicidava, desejando se vingar do devedor após a morte. Na Índia, a inadimplência de um devedor poderia se tornar uma grande ofensa a todo o clã do credor, gerando um sentimento de revolta e uma necessidade de vingança entre os grupos. Da mesma forma, entre os antigos germânicos, a punição era diretamente à pessoa, e não aos seus bens. Estes exemplos confirmam a relação de dependência criada por um contrato, um suposto limitador da liberdade individual. Weber chega a tratar do conceito da “formação de uma única alma”. As partes contratantes criavam uma relação fraternal que deveria se igualar a consanguinidade, caso estes já não pertencessem à mesma família. Contudo, não se trata de uma restrição da autonomia, tendo-se em vista que esse compromisso se realizou com o consentimento voluntário de ambas as partes. Se não é voluntário, tal liberdade nunca existiu. Neste conceito dos antigos, firmar um acordo é eliminar barreiras, levando os contratantes a um ponto único de existência. Um acordo era, nada mais e nada menos, que a confirmação da liberdade que estes possuíam entre si, a ponto de confiarem seus bens ou serviços um ao outro.
Não é assim, no entanto, que se vê um acordo em nossos dias. Weber analisa que tal postura sofreu uma transformação interessantíssima. O foco do contrato saiu de sobre os contratantes e a relação que estes possuíam, passando a se concentrar sobre matéria do contrato, o acordo em si. Com o advento do capitalismo, surgimento dos bancos e ascensão da burguesia, não importa mais com quem o acordo é feito, mas as vantagens que este acordo proporcionará. São, agora, de forma evidente, interesses puramente econômicos que mobilizaram os seres. Isso não quer dizer que não houvesse interesses escusos nos contratos dos antigos, o ser humano sempre foi o mesmo. Não é justo também dizer que a sociedade perdeu seu “caráter humano”. Perdeu-se o romantismo, caíram as máscaras. Não há mais os “laços de fraternidade”. Sempre houve interesse econômico, mas a racionalização da sociedade separou a economia da vida pessoal dos seres. Desta forma, podemos afirmar que a sociedade deixou de ser hipócrita, até certo ponto, reconhecendo a corrupção humana e, consciente disso, tomando medidas mais efetivas para seu combate. Nosso Código Civil, por exemplo, contém ações diretas a certos casos que pode o legislador prever.
É de se observar que em uma sociedade cada vez mais dinâmica (e peço perdão por usar esse clichê), em que as relações são maiores em número, menores em intensidade; em um mundo em que as distâncias se “encurtam”, em que as diferenças desaparecem, e os laços estabelecidos são dia-a-dia mais frágeis; enfim, neste contexto, não há como um gerente de banco morrer a cada empréstimo não pago (ainda que muitas vezes ele sinta essa vontade). A evolução histórica nos trouxe até aqui e mesmo as nossas ideologias “humanistas” se desenvolveram nesse sentido. Um credor não pode exigir a prisão de seu devedor, por exemplo, mas tem direito a receber uma restituição material e, dentro do possível, equivalente. Uma infração material recebe uma pena material. Nosso “direito tridimensional” leva em conta esse aspecto quando estuda o valor por trás das normas.
Voltando a frase que tomamos por base em nossa análise, vemos que Weber define uma das partes como aquela que possui “poder de disposição sobre uma coisa ou pessoa”. Se em um negócio uma das partes possui poder sobre a outra, a parte submetida tem sua liberdade ceifada. Tal forma de pensar é realmente lógica e até certo ponto nos parece óbvia. Mas, não é por estabelecer o contrato que uma das partes se torna submissa a outra. Se o acordo foi voluntário, como já tratamos, nada mais será exigido de nenhuma das partes a não ser o que se combinou previamente. Tal situação só deixa de existir quando há inadimplência de um dos lados. Sendo assim, a restrição da autonomia é fruto de indisciplina, não do acordo em si. O acordo é, sim, liberdade. Poder fazer um acordo é exercer essa liberdade, já que este é um ato voluntário. Citando novamente nosso Código Civil brasileiro, o legislador se preocupou muitíssimo em garantir que o acordo seja realmente voluntário, definindo os casos de “vício do negócio jurídico”. Um acordo bem feito, pensado, realizado com responsabilidade é um acordo bom para todos os acordantes, sempre. Como me ensinou minha avó, “o que é combinado não sai caro”.
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