Em 9 de Setembro de 2021, por sentença proferida pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, na Vara dos Registros Públicos da Comarca de Porto Alegre, Júpiter Wieczorek, uma pessoa de gênero não-binário, retificou seu prenome e sexo (como é colocado no registro) da certidão de nascimento. Júpiter foi a primeira pessoa a alcançar tal garantia em seu estado e quarta no país, o que é uma conquista ao movimento de pessoas transgênero não-binário, termo guarda-chuva utilizado para expressar uma identidade não contemplada estritamente nos espectros feminino e masculino. Tal decisão pode ser analisada pela ótica da mobilização do direito, pois compreende-se a importância dos tribunais, quando recorridos por sujeitos de direito, na afirmação da dignidade humana para essa comunidade, negada por outras instituições e espaços, como hoje é recorrente em cartórios.
De acordo com a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 4.275 proferida pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em 1 de Março de 2018, é reconhecido o uso do nome social pelas pessoas trans, travestis e transexuais, além da retificação do prenome indicado no registro de nascimento, diretamente em cartórios ou por vias judiciais. Atualmente, portanto, nota-se que o processo de alteração do nome para o uso social é facilitado. No entanto, isso só se tornou possível em cartórios, ainda que com muita resistência, para a realidade de pessoas trans binárias (ou seja, do gênero feminino e masculino), o que gerou a demanda da comunidade não-binária de recorrer aos tribunais como forma de garantir seu direito. Na sentença que afirma a restauração do registro civil de Júpiter, demonstra-se como a resolução do STF pode ser aplicada ao seu caso, não restringindo-se ao binarismo de gênero. Contudo, como não há um instrumento normativo no Brasil que preveja a alteração do registro civil para além de “masculino” e “feminino”, a determinação judicial da retificação de Júpiter com o termo “não-binário” abre precedentes para novas possibilidades no país.
Nesse sentido, é possível interpretar o caso citado por meio das ideias determinadas pelo pensador Michael W. McCann em “Poder judiciário e mobilização do direito: uma perspectiva dos ‘usuários’”. No artigo citado, o autor estabelece o nível instrumental (ou estratégico) de influência realizada pelos tribunais como aquele em que os agentes sociais se pautam nessas decisões para compreender áreas incertas do campo jurídico, assim como as movimentações sócio-políticas encontram precedentes nessas sentenças para sua atividade. Assim, como “fichas para negociação” em diferentes relações sociais (MCCANN, 2010, p. 184), os acórdãos são ferramentas para disputas de cunho político, como a afirmação do direito à identidade de gênero promovida pelo STF na ADI nº4275, ao reconhecer o uso do nome social, do mesmo modo que a decisão tomada pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, ao ampliar essa noção às pessoas não-binárias.
Ademais, o pensador afirma a existência de outro nível de influência do direito, o constitutivo, cuja característica principal é a sua absorção pela cultura em que as decisões são tomadas. Nesse sentido, ele determina: “os tribunais exercem um papel-chave em refinar, complementar e ampliar essa linguagem do direito dentro da sociedade” (MCCANN, 2010, p. 189). É de se notar que as próprias noções de não binariedade advém, em primeiro lugar, do movimento LGBTQ+ e toda a gama de pessoas que se identificam dessa maneira, o que induziu os tribunais em suas sentenças. Mas, como um movimento de troca, percebe-se que, através de casos como o de Júpiter, essas decisões chamam atenção às pautas de pessoas não-binárias na sociedade e no direito. Tal fato pode ser compreendido ao se observar notícias de jornais que vão do Rio Grande do Sul até o Piauí acerca das quatro primeiras retificações com tal especificidade no Brasil, as quais muitas vezes passaram a discutir questões de gênero e conceituar a não binariedade, amplificando percepções antes proferidas majoritariamente na comunidade LGBTQ+ para outros meios.
Para acrescentar, é necessário comentar acerca das possíveis mudanças na linguagem jurídica que podem surgir a partir desse caso. Em um cenário de vigência da Lei dos Registros Públicos, cujo artigo 54 determina a necessidade de registro de pessoas recém-nascidas com a identificação do seu sexo nas categorias “feminino” ou “masculino”, é perceptível a mudança de paradigma iniciada com o reconhecimento de identidades não-binárias. Dessa maneira, em um universo que confunde as noções de sexo com gênero a partir da data de nascimento de qualquer indivíduo, sendo, inclusive, necessária a retificação de gênero na categoria “sexo” para qualquer pessoa trans, percebe-se como o Direito é binário e como isso interfere na capacidade de autodeterminação, necessária para conferir a dignidade humana em toda a sociedade.
Assim, a alteração do registro civil para pessoas transgênero deve ser percebida como uma forma de concretização e afirmação da sua cidadania, haja vista que tais documentos são essenciais para a vida social (seja em consultas médicas, na procura por empregos, em ambientes como universidades e escolas). Portanto, o reconhecimento da identidade de gênero dado por meio desses registros deve ser compreendido como uma necessidade para a consolidação dos artigos 1º e 3º da Constituição Federativa do Brasil, que determinam o respeito à dignidade humana, assim como a busca por promover o bem de todas pessoas, sem qualquer discriminação. Logo, a partir do julgado analisado, percebe-se a relevância na mobilização dos tribunais por sujeitos de direito (como Júpiter e o movimento LGBTQ+) na asserção da cidadania e ampliação das noções sociais e jurídicas sobre gênero.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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BRASIL. Lei nº 6.015, de 31 de Dezembro de 1973. Dispõe sobre os registros públicos, e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l6015compilada.htm. Acesso em: 22 de Nov. 2021.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.275. Relator: Ministro Marco Aurélio. Distrito Federal. 01 de Mar. 2018. Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=749297200. Acesso em: 22 de Nov. 2021.
COIN, Juliana. Conheça as duas primeiras pessoas não binárias a conquistarem documentos com retificação de gênero e nome no RS. Jornal Matinal. 4 Nov. 2021. Disponível em: https://www.matinaljornalismo.com.br/matinal/reportagem-matinal/pessoas-nao-binarias-correcao-nome-genero-rs/. Acesso em: 22 de Nov. 2021.
LANDO, Giorge André e SOUZA, Carolina da Fonte Araújo de. (2020). O Direito à Autodeterminação da Identidade para além do Tradicional Binarismo de Gênero . Cadernos De Gênero E Diversidade, 6(1), 24–50. Disponível em: https://doi.org/10.9771/cgd.v6i1.32576. Acesso em: 20 de Nov. 2021.
McCANN, Michael. “Poder Judiciário e mobilização do direito: uma perspectiva dos “usuários”. In: Anais do Seminário Nacional sobre Justiça Constitucional. Seção Especial da Revista Escola da Magistratura Regional Federal da 2ª. Região/Emarf, p. 175-196.
-Letícia Magalhães, noturno.
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