A ação de reintegração de posse perpetrada por Plínio Formighieri e sua esposa Valéria Dreyer Formighieri, donos da fazenda Primavera, foi indeferida pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Tal recurso foi encaminhado ao Judiciário após “invasões” do Movimento dos Sem Terra (MST) nas circunscrições da fazenda.
A rejeição por parte do Judiciário deveu-se ao fato da fazenda em questão não atender ao preceito constitucional de “função social”, o que é evidenciado pelo revisor da petição, o desembargador Mário José Gomes Pereira, ao afirmar que “os autores( os donos da propriedade), ora agravantes, deixaram de demonstrar o adequado exercício do direito de propriedade, pelo atendimento de sua função social.”
Fato é que a função social de uma propriedade é um dever contido na Constituição Federal, constado no artigo 5º dela, o que, por sua vez, elucida o fato do casal, mesmo que proprietário do imóvel, tenha sido incapaz de obtê-lo novamente, visto que, muito provavelmente, o uso dessas terras não condizia com seu tamanho, seja pela pouca produtividade, ou até pela completa ausência da mesma em partes de sua extensão.
Contudo, mesmo que seja um dever do proprietário atender a este princípio, uma vez que o mesmo é tratado no ordenamento jurídico brasileiro, e, portanto, é revestido de validade, vê-se atualmente no Brasil uma tremenda desigualdade na distribuição de terras agricultáveis.
A história brasileira, marcada pelos anos de colonização e pela economia majoritariamente agrícola durante grande parte desse período, acabou por gerar no nosso país uma configuração de posse de terras secular, na qual poucas famílias , ainda hoje, concentram em si a maior parte das terras agricultáveis do país, deixando à margem um contingente descomunal de desapossados.
Esse efeito das bases sociais coloniais, ainda visível na nação brasileira, engendrou por parte do povo movimentos de confronto e protesto, os quais reivindicavam a distribuição igualitária das terras nacionais. O MST, o mais eminente desses movimentos, tornou-se de incomensurável importância nessa luta pela reforma agrária, a qual é válida não só pelo seu respaldo na Constituição, como também pela sua necessidade ao atenuar a distribuição altamente desigual de terras no Brasil. Observa-se que essa reivindicação dos sem terras acarretou, durante anos e anos, diversos atritos entre proprietários de latifúndios subutilizados e membros do movimento.
Embora a função social da propriedade estivesse presente desde a constituição de 1934, as decisões judiciais tomadas em concordância com o seu significado só passaram a ser realizadas nos últimos anos. Tal fato nos demonstra que, diferentemente do que a teoria da judicialização da política afirma, a qual focaliza grande parte da sua abordagem na atuação dos Tribunais frente a essas mudanças sociais, o principal ator dos avanços nas garantias dos direitos são os movimentos sociais, tendo como exemplo o MST citado anteriormente, o qual vem lutando há décadas pela consideração a favor de uma reforma agrária, pautada em preceitos evidentemente constitucionais.
Tendo em vista essa realidade, McCann conceitua a teoria da mobilização do direito, ao constatar que são, de fato, os movimentos sociais que fomentam atitudes do Judiciário, tanto no sentido de preservar os direitos fundamentais, como também ao garantir a dignidade humana a todos, não sendo algo que parta somente deles com fins a sua auto reprodução, como afirmava Ingeborg Maus. Na verdade, contrariamente à autora, que dizia ser os movimentos sociais apenas legitimadores de uma hipertrofia do Poder Judiciário, a mobilização do direito demonstra que pressões sociais, advindas de grupos e organizações dentro do povo, movimentam os tribunais em prol das causas populares.
Cristina Losekann e Luiza Bissoli, mediante uma extensa e comedida análise a respeito da concepção de McCann sobre a mobilização do direito, asseveram que “Os elementos simbólicos e institucionais analisados nos indicam que as leis e as instituições de Justiça são arenas importantes para a realização dos confrontos nas democracias contemporâneas.”, elucidando a questão do Poder Judiciário como fomentador do debate público e como incentivador dos movimentos sociais, os quais se expressam contrários aos males que afligem nossa sociedade, problemas esses que mostram-se discordantes ao ordenamento vigente nacionalmente.
Portanto, tendo em vista o conceito de mobilização do direito, e o utilizando para se entender o caso da invasão à propriedade Primavera, analisado inicialmente no texto, percebe-se que a decisão proferida pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul não se tratou de uma auto-referenciação, partindo apenas de preceitos constitucionais sem qualquer influência externa. Tratou-se, realmente, de uma decisão embasada na realidade social brasileira, um ato do Judiciário que se valeu dos movimentos sociais, movimentos esses que mobilizaram o direito em direção às garantias constitucionais de dignidade e de bem-estar social.
Evidencia-se, por conseguinte, o quanto que as pressões sociais, advindas de grupos organizados manifestantes de suas vontades e anseios, mobilizam o direito em prol de causas que, embora estejam validadas na lei, continuam negligenciadas e inócuas. Isso demonstra que o direito por si mesmo não é capaz de garantir os direitos fundamentais, necessitando-se das mobilizações sociais para que a inércia dos Tribunais seja superada.
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