Mês retrasado, em Setembro, a juíza Joana Carolina Lins Pereira, titular da décima segunda vara da justiça federal, em Pernambuco, determinou que a União forneça em caráter de urgência o remédio Zolgensma para a família de um bebê de quatro meses portador de um tipo raro de atrofia muscular espinhal, a qual se não tratada é fatal em 100% dos casos até os dois anos. O SUS forneceria sem problemas o remédio se não fosse por um empecilho: seu custo é de 2,1 milhões de dólares, o que com a cotação da data de publicação deste texto se converte em mais dez milhões de reais. O seu grande diferencial (apesar de nem de longe justificar esse preço) é um novo mecanismo que faz uma cópia do DNA, além de ser dose única, sendo assim mais apropriado para o tratamento do bebê que os medicamentos anteriormente administrados.
A decisão da juíza, louvável diga-se de passagem, vai de encontro com a constituição federal brasileira, a qual assegura aos cidadãos o direito à vida, sendo dever do estado resguardar esse direito. A juíza nesta linha de raciocínio justifica sua decisão, argumentando que a vida do bebê supera qualquer valor orçamentário e deve ser protegida. É louvável também pois decidiu que a União deve ressarcir não o valor integral, mas apenas a diferença entre o já arrecadado pela família em uma ''vaquinha'' e o custo do remédio. Além das vias de fato jurídicas, no entanto, é importante entender o contexto sociológico que esta decisão se insere, seus precedentes e suas consequências. Para possibilitar este entendimento, utilizar-se da ótica da tese do acadêmico Michael McCann é bastante útil. Nas análises dos julgados anteriores, os tribunais foram vistos como protagonistas, as vezes quase como com "vontade própria". McCann, no entanto, adotará uma perspectiva um pouco diferente para tentar entender e explicar o porquê dos tribunais serem bastante presentes nas sociedades ocidentais neoliberais.
McCann argumenta que este processo de adquirir maior presença é nada simples e envolve os diversos atores sociais e passa pelas diferentes camadas jurídicas, com as motivações desses atores moldando o processo. Os tribunais, devido a essa dinâmica que envolve uma maior tentativa dos setores da sociedade de fazerem valer seus interesses, adquiriram maior poder (pois não só mediam como atuam ativamente neste processo) e assim uma crescente participação no funcionamento do estado democrático de direito. Entretanto, é importante não desvencilhar os tribunais dos valores culturais da sociedade, afinal eles não tem um conjunto de valores que esteja totalmente cindidos dos da sociedade. Desta forma, pode se perceber que há uma crescente mobilização do direito (motivada dentre outros motivos pelas lacunas deixadas pela inércia de outros agentes do estado, como os políticos) e ela está intimamente conectada a maior atuação dos tribunais na sociedade civil.
É importante notar, que diferente da análise do Bourdieu, nesta o protagonismo está nos cidadãos, e não nos tribunais em si. Estes que causam o que ambos autores concordam que é a já dita maior presença dos tribunais. Neste caso da decisão da juíza, pode-se constatar que a família do bebê mobilizou o direito para garantir que seu filho possa continuar vivendo, ação que involuntariamente garante ao tribunal uma maior importância (indo além da de fiscalizar) e poder (sendo capaz de ditar que o Ministério da Saúde deve gastar em x, no caso o medicamento). Destarte, a partir deste exemplo, que não é isolado, afinal há já um histórico de casos de judicialização do SUS (o que inclusive suscita bastante debate), pode-se concluir que os tribunais são ferramentas que ao serem utilizados no jogo das relações entre os setores civis e das disputas sociais, tornam-se hipertrofiados, gerando consequências jurídicas ora positivas (como quando pessoas pobres conseguem acesso a medicamentos caros) ora adversas (quando tribunais extrapolam suas prerrogativas constitucionalmente previstas em razão de interesses obscuros).
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