Em algum lugar entre o etéreo e o tangível, caminhava um ser despossuído de feição, aparência e função. Inserido nos campos quiméricos da existência – onde tudo parecia apresentar razão para existir – ele simbolizava uma tela em branco, enquanto aguardava para ser preenchido e ressigificado pelas cores do indubitável. Ele vagava, sentindo os aromas daquilo que desejava ser, contudo, ainda não era capaz de enxergar os caminhos corretos para tornar-se, ao invés de somente almejar. O que estimulava cada um dos seus passos era a suspeita de que no seguinte residiam as respostas para todas as perguntas desesperadas da sua essência incompleta e incerta. Caminhou por mais dias do que conseguia contar.
Contudo, após tanto buscar, deparou-se com algo nunca visto antes: uma estação de trem. Deserta como estava, parecia estar em desuso há bastante tempo. Nenhum sinal de ocupação, nenhum sinal de respostas. Ainda assim, o ímpeto da sua curiosidade o impediu de retornar para o caminho que antes seguia. Então, após subir os degraus da entrada principal, seguiu – assim como sempre – a esmo; sentou-se em um dos bancos empoeirados e esperou. Nenhum trem, nenhum resquício de esperança. Porém, a partir de determinado momento, ouviu o ecoar de um rádio, que pronunciava palavras enevoadas – talvez em um idioma estrangeiro. Aguardou ainda sentado, por mais um tempo, sob o subterfúgio de estar presente no espaço para caso o som parecesse estar mais próximo. A voz não aparentava desejar se aproximar; assim, o ser, guiado pelas ondas sonoras, foi em busca do único resquício de vida que teve acesso durante muito tempo.
O som fez com que ele fosse levado a uma bilheteria – intitulada do que, aparentemente, era o nome da estação de trem: Cultura. Lá, encontrou o fatídico rádio, que era embalado por uma mulher bastante idosa. Ela possuía longos cabelos grisalhos, infinita rugas ao longo de todo o rosto, e um cachecol grande e vermelho. Havia apenas uma lamparina em toda a bilheteria que acentuava ainda mais os traços do cansaço situados ao longo de toda a essência daquela mulher. Quando se apresentou, disse que seu nome era Judite e que não encontrava alguém há muito tempo. Parecia estar radiante, apesar da exaustão promovida pela idade avançada. Comentou, também, que os trens passariam somente durante a madrugada e que conseguiria prestar assistência, caso assim eu desejasse. Agradeci e imediatamente senti um incômodo inundar o meu corpo. Não sabia o meu nome, tampouco a função da minha existência. Judite existia para os bilhetes e para consertar o rádio – conforme os postulados seguintes dela –, mas para que eu servia? Não saberia dizer. Para todos os efeitos, apresentei-me como um viajante.
Ela disse que eu não era o primeiro viajante a passar por aqueles confins e perguntou-me qual era o meu destino. O desconforto retornou – ou não havia ido embora, de fato. Alguns minutos escorreram e respondi que não tinha ideia de qual opção escolher. Eram tantas e eu sou tão pouco. Ela fixou o olhar em mim por alguns instantes e, finalmente, disse que não havia problemas e que desde sempre lidou com perdidos como eu. Não sabia que eu estava perdido, mas realmente fez sentido. Nenhuma outra palavra me definia tão bem.
Judite deixou o rádio – ainda ligado – em cima da mesa, girou cadeira e, quando virou para mim, estava com uma caixa repleta do que pareciam ser bilhetes prateados. O nível de complexidade era diverso – alguns eram mais simples e outros, mais rebuscados –, porém, todos simbolizavam certeza e, pela primeira vez, estive perante uma decisão importante, e não apenas diante escolhas prosaicas.
Judite olhou para mim e perguntou se eu estava com alguma bagagem. Eu disse que não e que carregava comigo somente os pilares de mim mesmo e as lembranças daquilo que já se foi (li essa frase em algum outdoor, acho; pareceu-me pertiente). Ela sorriu e levantou-se da cadeira, saindo logo em seguida. Durante os momentos subsequentes, a noção de solidão retornou e preencheu todo o espaço. Até mesmo o calor da luminosidade da lamparina estava esvaindo-se. Nenhum sinal de trens, nem de respostas.
Após certo tempo, Judite retornou com uma mala, passou-a por cima do balcão e entregou-a para mim. Pediu-me para abrir e verificar se estava do meu gosto. Quando abri, encontrei diversas roupas, livros e utensílios domésticos. Avistei, dentre outros aspetos, um chapéu, um livro de filosofia e uma bússola. Fiquei tão atônito ao ponto de esquecer-me de agradecer pelo presente. Era a primeira vez que eu ganhava um. Pensei em recusar, mas, analisando a felicidade da doadora, seria, no mínimo, um ultraje. Assim, peguei algumas coisas aleatoriamente e, ao final, estava vestindo uma calça marrom, uma camiseta amarela, e uma grande blusa esverdeada. Coloquei o chapéu (já mencionado) sobre a minha cabeça e calcei uma bota preta. Estava sentindo-me completo, também, pela primeira vez.
“Tudo isso irá ajudar você a se encontrar e a definir quem você é”, disse Judite. Admito que não sabia qual era a utilidade do livro de filosofia, bem como de muitos outros fatores presentes na mala, mas estava certo de que a bússola seria de grande ajuda e não pretendia deixar que escapassem as oportunidades de entender factualmente o que tudo representava. Decidi acreditar em Judite.
Disse para ela que não conseguiria pagar por nada daquilo, nem mesmo pelo bilhete, e ela respondeu prontamente que eram presentes da própria estação de trem. Ela não usaria aquelas coisas e, considerando o fato de que, segundo ela, os trens estão sempre passando por aqueles trilhos, ela gostaria de entregar todos os bilhetes pendentes, para todos aqueles que precisarem – talvez como forma de filantropia. Ela disse que, assim como eu, já esteve perdida. Após todos esses eventos, finalmente encontrei a minha voz e agradeci por todo suporte. Ao final, Judite entregou para mim um dos bilhetes mais esbeltos e desejou que a minha viagem fosse boa e que eu fosse feliz. Acenei com a cabeça, retribuí o sorriso e, apertando o bilhete na mão direita e a mala na esquerda, afastei-me da cabine de bilhetes. Ouvi o ressoar da locomotiva; ela estava próxima.
Antes que o trem parasse na estação, ouvi a mulher dizer:
- Você chegou até aqui, meu caro, e merece minha admiração por isso. Posso ter ajudado com o destino, mas a viagem ainda é sua, assim como todos os caminhos condizentes a ela. Você está apenas no início e estou certa de que, ao longo de toda a sua existência, você encontrará muitos outros trilhos e trens. Sempre que estiver em dúvida de qual caminho escolher, olhe a sua bagagem. Lembre-se sempre de que ela define você!
Quando olhei, ela estava acenando com o cachecol vermelho. Acenei de volta, com um sorriso brilhante no rosto. Notei que o rádio havia voltado a tocar. Ele não seria o único a trazer alegria, no dia de hoje. O trem chegou e, olhando em volta e para as incertezas do meu passado pela última vez, parti em direção ao encontro ao meu futuro. Sentia ele sedento por mim; também estava sedento por ele.