"Madame Satã" é um filme nacional extremamente
provocativo, ao mesmo tempo que não deixa de refletir uma certa
contemporaneidade em seus mosaicos cinematográficos. Lançado em 2002,
dirigido por Karim Ainouz e estrelado por Lázaro Ramos, o longa metragem conta
a história de João Francisco dos Santos. É num bairro periférico do Rio de
Janeiro ─ já em grande parte associado à vida marginalizada ─ a Lapa,
em 1930, que a trama se sucede. A personagem principal é primeiramente apresentada
em uma delegacia, onde sua descrição para ser fichado é feita por um policial:
preto, pobre, homossexual, já tendo sido processado por diferentes tipos de
crime, incluindo agressão e homicídio, assim descrito pelo narrador como “propenso
ao crime”.
Em contrapartida ao esperado, considerado não só o
contexto histórico-social como também político em que o enredo transita, João
Francisco sem medo apresenta sua sexualidade assim como se identifica e nas
noites cariocas em uma casa de show é conhecido pela personagem “Madame Satã”, após
ganhar um concurso de fantasia do bloco Caçadores de Veados no carnaval.
““bicha, crioulo, viado, safado, boca de
chupar-rola”, são palavras gritadas por um homem embriagado em meio a multidão
em uma de suas apresentações. Diante de tais agressões, João leva dele um soco
no rosto, posteriormente, em fúria assassinando-o com três tiros – e é condenado
a dez anos de prisão.
Assim como cita Anselmo Peres Alós, Mestrando em estudos literários na Universidade
Federal de Santa Maria, em “A
rubra ascese queer de João Francisco dos Santos: Madame Satã, do testemunho às
telas”:
“Enquanto
a polícia mobiliza o discurso médico-jurídico para construir a identidade
doentia, marginal e criminosa de João Francisco, ele próprio utilizará uma
linguagem não-verbal para se constituir como um
híbrido de convenções
masculinas e femininas”.
Fato é que, ao mesmo tempo
que se tem representados diferentes tipos de agressões, não há que se discutir
que um cidadão desde que nascido, colocado a margem da sociedade – compondo minorias como negro e homossexual, que ainda atua em performances
com transformações de gênero – não é hoje uma grande parte da realidade contemporânea.
Contudo, uma mobilização do Direto frente à essas dificuldades, pela própria
ideia de existência, como a Ação Direta de Inconstitucionalidade por
Omissão (ADO) 26, movida pelo o Supremo Tribunal Federal (STF), transcendem
preconceitos herdados e reproduzidos nas diferentes esferas da sociedade,
inclusive jurídica. A inclusão de atitudes LGBTfóbicas em alinhamento à Lei nº.
7716/1989, que pauta o racismo foi intensamente
discutida, sendo acatada pelo órgão em face do crescente e violento número de
agressões, não só verbais como físicas, provocadas à essa minoria.
Cientes
que casos como os vivenciados por João Francisco aconteceram, acontecem e mesmo
com a nova decisão do STF vão continuar acontecendo, muitos os quais nunca
ouvimos nem ouviremos falar, caminhar por meios democráticos à um novo caráter
de existência reconhecido juridicamente, é um passo que deve ser assim
considerado "à madame satã que ninguém vê". Que ninguém quer ver, que ninguém quer ouvir, que ninguém quer saber - e que todo mundo finge que não existe, mesmo estando ao nosso lado.
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