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segunda-feira, 7 de outubro de 2019

Madame Satã x ADO 26


    O filme “Madame Satã”, de novembro de 2002, com direção de Karim Ainouz, protagonizado brilhantemente por Lázaro Ramos, é baseado em uma história real e aborda a vida de João Francisco dos Santos, em meados dos anos 30, na Lapa, região do Rio de Janeiro. João, Madame Satã, ficou assim conhecido por sua paixão pela obra francesa de tal nome, dirigida por Cecil B. deMill e que tornou-se o nome de sua marcante fantasia de carnaval.

     Negro, pobre, homossexual, travesti e artista, com uma vida conturbada desde o princípio, enfrentando dificuldades das mais diversas, João respondeu a 26 processos, dentre eles desacato a autoridade, agressão, homicídio e etc. O desenvolvimento da obra se dá com uma das prisões mais marcantes do personagem, a de 1932, após atirar várias vezes e assim assassinar um homem depois um episódio de homofobia. Desde muito jovem tornou-se uma figura contraditória, curiosa e emblemática que teve forte influência no cenário das lutas das minorias nacionalmente.

     No início, no momento da prisão, o narrador já começa classificando João como “pederasta”, “rudimentar”, “com pouca inteligência”, “propenso ao crime”, e dentre outros termos que relacionando ao julgado anteriormente analisado, a ADO 26, podemos identificar no vocabulário de personalidades preconceituosas, radicais e conservadoras que fazem com que a evolução social, dentre não só a comunidade LGBT, seja postergada sem a criminalização.

    O filme deixa muito evidente que a sociedade ali retratada pertence a “mais baixa classe social”, onde se tem a ideia de trabalhos indignos, esbórnia, consumo de drogas, violência, relação entre homossexualidade e devassidão, e dentre outros aspectos que alimentam o imaginário popular e a noção de violência/ “combate” a essas minorias bem como negação de seus direitos. Há cenas que também explicitam isso com, por exemplo, desrespeito às prostitutas, onde simplesmente ignoravam seus direitos básicos e fundamentais, protegidos na Constituição Federal em específico no artigo 5°, inúmeras vezes mencionadas pelas partes favoráveis a ADO já citada.

    Madame Satã é ,em minha perspectiva, uma manifestação artística do grito pela necessidade da criminalização da homofobia, é o retrato da vida de um ser que, infelizmente, como inúmeros outros sofreu repressões, discriminações, agressões (tanto físicas como psíquicas),  lutou contra tudo, todos, e até mesmo contra si mesmo por ser quem era, por viver algo que ia além de suas escolhas, por sonhar dissonante a considerada maioria pela sociedade, que por resumir, sozinho enfrentou o mundo.

    Essa luta de “um contra todos” tem um peso, bem como, uma consequência em vários âmbitos. Muito vemos em relação à maneira violenta de solucionar conflitos e problemas, algo bastante ilustrado no filme através da curiosa habilidade de João na capoeira, considerada um símbolo de resistência na época colonial, assim como “vagabundagem”, ato criminoso, pós a abolição da escravatura. Não coincidentemente, no contexto de Madame Satã não era diferente, e podemos certamente compreender como um ato de resistência.

    Mas não só isso, podemos compreender com o desenvolver da obra alguns aspectos, e nos questionarmos sobre diversos outros como, por exemplo, do por que o personagem agir com violência, e a resposta, ou ao menos algum fator que poderia ser motivador, surge em poucas cenas depois, nos momentos em que ele sofre agressões sociais das mais diversas e acaba respondendo através de mais violência, ainda que não devesse.

    Essa resposta violenta as manifestações homofóbicas e discriminatórias estão presentes em cenas como a que João e os amigos tentam entrar no “High life club” e são barrados, e também, a mais marcante, dentre as cenas finais, o assassinato, mais uma vez ressaltando nas atitudes de Madame Satã a questão da autodefesa.

    Essa autodefesa, empiricamente falando, pode estar presente não só em ações, mas em discursos fortes, algumas vezes um tanto quanto agressivos e hostis, que escondem muita dor, e como já mencionado, veem a violência, ainda que verbal, como um meio de combater ainda mais as demais agressões vindas do mundo.

     Mas uma maneira interessante de lidar com essas questões, presentes no filme, e que podemos observar na realidade também, é com a arte. Com dança, teatro, música e outros tipos de manifestações artísticas que dão oportunidade de extravasar, de expor suas ambições e inquietações, e assim traduzirem-se por meio de elementos, sejam eles quais forem.

    Com o decorrer do longa-metragem e seu desfecho, surge outro questionamento a partir da tentativa de relacionar o julgado acerca da criminalização da homofobia por meio da Ação de Inconstitucionalidade por Omissão número 26, com a obra: “O que buscava Madame Satã e o que buscava a comunidade LGBT com a ADO 26?”

    A resposta vem em cenas que assim como no julgado vemos a busca por legitimidade e reconhecimento de suas lutas, quando João fala que ao tornar-se famoso com suas apresentações, deixaria de simplesmente “aceitar seu lugar social” como dizia nos momentos de desmotivação, “tornar-se-ia um profissional”, “tomaria um rumo”, iria “endireitar-se”, e o mais interessante... “Ser tratado diferente”, ou seja, tratado com respeito, igualdade, e assim poder ser admirado por seu trabalho, sua expressão artística.

    Exatamente o mesmo buscou-se juridicamente na ADO em questão com a criminalização, ainda que enquadrada no crime de racismo, busca mitigar as moras legislativas, as questões burocráticas de se criar uma lei específica, procurando assim, o mais rápido possível, diminuir os danos causados pelas diversas manifestações da homofobia e da transfobia, como expresso no arquivo, das “agressões motivadas pela orientação sexual e/ou identidade de gênero, real ou suposta, das vítimas”, agressões essas que não só ofendem, mas matam por dentro e por fora cada uma delas, assim como o racismo, independente de como ocorra. Além de mencionar o caráter criminoso de negligenciar, desconsiderar a inconstitucionalidade da prática.

    Logo, o cine debate promovido na VI Semana de Sexualidade e Gênero na Unesp Franca foi de grande importância para que pudéssemos ter uma noção do quão impactante são essas questões na vida das pessoas da comunidade. Através da participação das integrantes transexuais do Coletivo “Casixtranha” de Araraquara, foram feitos relatos sobre o cotidiano, houve demonstração de suas manifestações artísticas, exposição de projetos, bem como os paralelos entre o filme “Madame Satã” e a realidade que explicitaram, nos permitindo refletir o quão essencial é a boa, harmônica, proporcional e efetiva atuação do Direito e dos poderes públicos para que seus direitos e liberdades sejam garantidos, bem como, seu bem estar no meio social.



Letícia E. de Matos
1° ano - Direito Matutino







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