Ambientalizado no Brasil da primeira metade do século XX, o filme Madame Satã, dirigido por Karim Aïnouz, inicia seu enredo a partir da caracterização de uma vida urbana carioca regida, sob a ótica das minorias, no sentido da repressão policial, econômica e do estabelecimento de abismos sociais cada vez mais intensos. As heranças do racismo e da escravidão são evidenciadas com ênfase, a exemplo de como a figura da protagonista, a qual dá nome ao longa-metragem, é representada e tratada pelos demais personagens, isto é, um homem negro, pobre, homossexual e morador da região periférica, situação de mais agravante vulnerabilidade em comparação aos pobres brancos ou prostitutas também retratados nesse contexto predatório e ausente do Estado Novo quanto à proteção às minorias.
Em paralelo, o principal ponto reiterado pelas palestrantes no Cine Debate acerca da obra foi a correlação entre a condição de rua, pobreza e racismo provenientes de políticas adversas às minorias e o agravo da condição prisional e repressiva direcionadas a essas. Nesse sentido, atentam ao fato de que a cultura do cárcere é um dos elementos mais importantes na história e luta do movimento travesti no Brasil, uma vez que, negligenciados por um Estado autoritário e conservador, esses indivíduos acabavam, corriqueiramente, adentrando os âmbitos da prostituição, dos jogos de azar e do crime de um modo geral, assim como explícito no filme.
Assim, a soma dos fatores presentes em Madame Satã, ou seja, transformista, negra e pobre, juntamente ao papel que cabe a ela naquela sociedade (subserviência sexual), demonstra com clareza o prisma racista e transfóbico existente não apenas no Brasil estadonovista, mas um traço persistente até a contemporaneidade, uma vez que a demanda somente foi apreciada de maneira efetiva por uma corte brasileira já na segunda década do século XXI, através da ADO n°26, que versava sobre a criminalização das mais variadas formas de violência à comunidade LGBT. Além disso, o filme atenta também ao fato de que as reivindicações sociais oriundas dos setores minoritários são, muitas vezes, inviabilizadas de mobilizar o direito, assim como aponta o sociólogo Michael McCann, pois estão, constantemente, em situação de extrema repressão e marginalização.
Portanto, cabe realizar, por fim, uma última análise, tendo em vista, sobretudo, o método histórico. O Estado Novo é marcado pela consagração, mesmo que somente normativa, de direitos humanos de segunda dimensão, como o sufrágio feminino e os direitos trabalhistas (CLT). No entanto, sobressalta-se desse cenário uma forte elemento indissociável ao se observar a sociedade brasileira: o racismo e a lgbtfobia que perpetua toda a estrutura. Se há, de um lado, o já tardio estabelecimento de direitos fundamentais a determinadas classes (médias altas e baixas), há, do outro, a intensificação da repressão às minorias, estando indivíduos como Madema Satã, nesse ponto de vista, ocupando a posição de mais forte coerção advinda de um política estatal negligente e altamente repressiva que impossibilita, historicamente, a mobilização do direito e a efetivação de garantias fundamentais a grupos marginalizados e sobre os quais se direciona a violência.
Luiz Carlos Ribeiro Junior - Direito noturno
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