Total de visualizações de página (desde out/2009)

segunda-feira, 7 de outubro de 2019

Madame Satã e a mobilização do direito


O filme Madame Satã narra a história de João Francisco dos Santos, filho de escravos, homossexual e ex-presidiário.  No inicio do filme há uma cena dele sendo interrogado e fichado pela polícia descrito como preto, pobre, dotado de instrução rudimentar e sujeito de pouco inteligência. Como o filme se passa na Lapa, lugar conhecido pela vida festiva no Rio de Janeiro, o personagem assume sua orientação sexual com orgulho, apesar de todo o preconceito. João Francisco do Santos assume sua sexualidade, e interpreta Madame Satã uma personagem que se tornaria icônica nas noites cariocas. Setenta anos depois, ao passear pela Lapa é possível ver a população com uma orientação sexual divergente da maioritária, marginalizada e em situação de vulnerabilidade social, no mesmo bairro. Fazer programa, muitas vezes, é a única maneira que encontram de viver sua breve vida, que para transexuais tem a estimativa de vida de 35 anos no Brasil.
            Uma visão inicial e acrítica aparentaria , a primeira vista, que poucas coisas mudaram, mas apesar de estarmos longe do mínimo desejável, houve mudanças significativas. Hoje há a união homoafetiva com os mesmos direitos do casamento, há partidos e pessoas que defendem direitos iguais para todos independente da orientação sexual. Na última pesquisa Datafolha 75 por cento dos entrevistados acreditam que a homossexualidade deva ser aceita. Uma série de direitos foram assegurados através do sistema judiciário e dos demais poderes. A esquerda que nos anos 30 acreditava que deveria pautar sua luta na melhoria das condições de vida da classe trabalhadora como um todo, agora defende e encapa pauta das minorias, inclusive das minorias da população LGBTQ+. No ano de 1998, Luís Inácio Lula da Silva ao ser questionado se aprovaria o casamento homossexual, disse que não aprovaria. As mudanças no campo das mentalidades e do direito somente foi possível, em grande medida, graças ao poder judiciário e ao STF que em muitos momentos exerceu o papel de corte contra majoritária e encampou a luta da população LGTQ+.
            Para entender melhor esse fenômeno é necessário recorrermos ao McCann, que explora a questão da mobilização do direito para assegurar direitos a minorias. O autor defende que muitas vezes pautas minoritárias ao não terem espaços na agenda legislativa acabam encontrando espaço na agenda do judiciário. E que essas pautas, ao serem acolhidas pelo judiciário, representam uma ponta de lança para que, posteriormente, seriam acolhidas por toda a sociedade. O exemplo que corrobora para essa tese, é a legalização do casamento “inter-racial” nos Estados Unidos, quando a Suprema Corte, em 1967, colocou um fim na proibição do casamento entre pessoas de cores diferentes. Na ocasião, 72 por cento dos americanos eram contra o casamento, hoje o casamento entre pessoas de cores diferentes é praticamente unanimidade nos Estados Unidos.
            No entanto, a mobilização do judiciário, feito por diferentes agentes deve ser utilizada com cuidado, porque ela pode gerar contra mobilizações judiciais e até políticas. Muitas das questões ao não serem tratadas e debatidas com todo o povo acabam gerando multidões contra as demandas. Portanto, a solução seria promover um longo debate popular. Outro problema que se coloca, é que ao judicializar tantas demandas, o judiciário fica inflado e abre um precedente perigoso para o judiciário hipertrofiado apequenar as participações populares, como ocorre na Venezuela (Onde a Suprema Corte esvaziou os poderes da Assembleia Nacional da Venezuela) e outros países onde o judiciário é utilizado para solapar o poder do povo, sempre com base em precedentes tidos como bons por alguns.
            Em suma, a mobilização do judiciário embora seja positiva em muitos aspectos deve ser utilizada com cautela. Sobretudo em casos que há um envolvimento do direito penal, onde a ratio da lei deveria ser única e exclusivamente a lei elaborada pelo parlamento. Um dos perigosos precedentes foi o da criminalização da homofobia, comemorado por uma esquerda punitivista, mas que pode ser um perigoso precedente para o STF criminalizar outras condutas. Esse mesmo artificie já foi utilizado em países que vivem uma crise na democracia, o exemplo máximo é a Venezuela, onde pessoas são criminalizadas por analogia, interpretação expansiva e outras coisas. E a de se perguntar, isso é legitimo? Ou esse artífice só pode ser utilizado a nosso favor?

Ricardo da Silva Soares-Noturno

Nenhum comentário:

Postar um comentário