O
filme Madame Satã narra a história de João Francisco dos Santos, filho de
escravos, homossexual e ex-presidiário. No inicio do filme há uma cena dele sendo interrogado e fichado pela
polícia descrito como preto, pobre, dotado de instrução rudimentar e sujeito de
pouco inteligência. Como o filme se passa na Lapa, lugar conhecido pela vida
festiva no Rio de Janeiro, o personagem assume sua orientação sexual com
orgulho, apesar de todo o preconceito. João Francisco do Santos assume sua
sexualidade, e interpreta Madame Satã uma personagem que se tornaria icônica
nas noites cariocas. Setenta anos depois, ao passear pela Lapa é possível ver a
população com uma orientação sexual divergente da maioritária, marginalizada e
em situação de vulnerabilidade social, no mesmo bairro. Fazer programa, muitas
vezes, é a única maneira que encontram de viver sua breve vida, que para
transexuais tem a estimativa de vida de 35 anos no Brasil.
Uma visão inicial e acrítica aparentaria , a primeira vista, que poucas coisas mudaram, mas apesar de estarmos longe do mínimo desejável, houve mudanças significativas. Hoje há a união homoafetiva com os mesmos direitos do
casamento, há partidos e pessoas que defendem direitos iguais para todos
independente da orientação sexual. Na última pesquisa Datafolha 75 por cento
dos entrevistados acreditam que a homossexualidade deva ser aceita. Uma série
de direitos foram assegurados através do sistema judiciário e dos demais
poderes. A esquerda que nos anos 30 acreditava que deveria pautar sua luta na
melhoria das condições de vida da classe trabalhadora como um todo, agora
defende e encapa pauta das minorias, inclusive das minorias da população
LGBTQ+. No ano de 1998, Luís Inácio Lula da Silva ao ser questionado se
aprovaria o casamento homossexual, disse que não aprovaria. As mudanças no
campo das mentalidades e do direito somente foi possível, em grande medida,
graças ao poder judiciário e ao STF que em muitos momentos exerceu o papel de
corte contra majoritária e encampou a luta da população LGTQ+.
Para entender melhor esse fenômeno é necessário
recorrermos ao McCann, que explora a questão da mobilização do direito para
assegurar direitos a minorias. O autor defende que muitas vezes pautas minoritárias
ao não terem espaços na agenda legislativa acabam encontrando espaço na agenda
do judiciário. E que essas pautas, ao serem acolhidas pelo judiciário, representam
uma ponta de lança para que, posteriormente, seriam acolhidas por toda a sociedade.
O exemplo que corrobora para essa tese, é a legalização do casamento “inter-racial”
nos Estados Unidos, quando a Suprema Corte, em 1967, colocou um fim na proibição
do casamento entre pessoas de cores diferentes. Na ocasião, 72 por cento dos americanos
eram contra o casamento, hoje o casamento entre pessoas de cores diferentes é
praticamente unanimidade nos Estados Unidos.
No entanto, a mobilização do judiciário, feito por
diferentes agentes deve ser utilizada com cuidado, porque ela pode gerar contra
mobilizações judiciais e até políticas. Muitas das questões ao não serem
tratadas e debatidas com todo o povo acabam gerando multidões contra as
demandas. Portanto, a solução seria promover um longo debate popular. Outro problema que
se coloca, é que ao judicializar tantas demandas, o judiciário fica inflado e
abre um precedente perigoso para o judiciário hipertrofiado apequenar as
participações populares, como ocorre na Venezuela (Onde a Suprema Corte
esvaziou os poderes da Assembleia Nacional da Venezuela) e outros países onde o judiciário é utilizado para solapar o poder do povo, sempre com base em precedentes
tidos como bons por alguns.
Em suma, a mobilização do judiciário embora seja positiva
em muitos aspectos deve ser utilizada com cautela. Sobretudo em casos que há um
envolvimento do direito penal, onde a ratio da lei deveria ser única e
exclusivamente a lei elaborada pelo parlamento. Um dos perigosos precedentes foi
o da criminalização da homofobia, comemorado por uma esquerda punitivista, mas
que pode ser um perigoso precedente para o STF criminalizar outras condutas. Esse
mesmo artificie já foi utilizado em países que vivem uma crise na democracia, o
exemplo máximo é a Venezuela, onde pessoas são criminalizadas por analogia,
interpretação expansiva e outras coisas. E a de se perguntar, isso é legitimo?
Ou esse artífice só pode ser utilizado a nosso favor?
Ricardo da Silva Soares-Noturno
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