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segunda-feira, 7 de outubro de 2019

Uma Madame e uma pugna por direitos

          A homotransfobia é um problema que gera inúmeras consequências para as populações pertencentes ao grupo identificado à comunidade LGBTQI+, manifestando-se em dimensões psicológicas, morais, sociais e físicas, através de uma incomensurável agressividade.

          O Brasil possui um número extremamente elevado de ataques contra esses grupos, assim como atitudes preconceituosas, exclusões e manifestações de intolerância, sendo estes fatores que fazem com que muitos desenvolvam sérios problemas psicológicos, como a depressão, enfrentem dificuldades para inserirem-se no mercado laboral ou no meio acadêmico, levando muitos ao suicídio.

          Sendo o cinema uma elegante e acessível forma de arte, é uma maneira eficiente de manifestar ideias, assim como denunciar situações que ocorrem dentro de nossa sociedade que não deveriam ser tidas como normais. Dentro desta concepção, o filme Madame Satã, de 2002, dirigido por Karim Aïnouz, atua como uma forma de denunciar as opressões exercidas contra alguns dos grupos mais marginalizados e oprimidos pela sociedade, em especial os homossexuais. Embora o filme se passe no Rio de Janeiro da década de 1930, essas opressões se manifestam em várias localidades do mundo, inclusive no Brasil, até os dias de hoje.

          O filme conta a história de João Francisco, interpretado por Lázaro Ramo, um homem negro, pobre, homossexual, morador de um cortiço na periferia do Rio de Janeiro, frequentador da boemia carioca da época, ao lado de prostituas, gays, alcoólatras e outros grupos marginalizados. É um ótimo lutador, utilizando-se da capoeira como uma maneira de defender-se quando se encontra perante alguma ameaça. Apresenta uma ótima ambientação, mostrando bem a realidade de uma significativa parcela da população da época.

          João é constantemente submetido a humilhações e constrangimentos por conta de suas características, principalmente por sua sexualidade, o que acaba fazendo com que o mesmo tenha ataques de fúria recorrentes, como uma forma de resposta contra a sociedade por todas as injurias as quais é submetido.

          A partir de determinado ponto do filme, João começa a realizar performances artísticas transformistas, já que sempre fora um apreciador de diversas formas de arte, adotando o nome artístico de Madame Satã. O protagonista acaba sofrendo um ataque homofóbico após uma de suas apresentações, mesmo sem ter melindrado a ninguém. Um senhor começa a lhe insultar e dirigir-lhe palavras ofensivas como uma forma de externar seus preconceitos. Esse tipo de atitude foi ignorada pela sociedade e pelo poder publico por séculos, entretanto, esta conjuntura está modificando-se.

          Destarte, pode-se realizar um dialogo entre as situações que o filme expõe com a realidade, já que milhões de pessoas sofrem situações semelhantes e igualmente degradantes dentro da sociedade brasileira.

          Dentro disso, o STF julgou em 2019 a criminalização de ações de homofobia, semelhantes às qual João Francisco é submetido rotineiramente. Condutas como a supracitada seriam enquadradas dentro da Lei do Racismo, que tipifica crimes de caráter discriminatório como inafiançáveis e imprescritíveis, e passou, em junho, a incluir sanções por discriminações contra gays, lésbicas, transexuais, travestis e outros grupos que integram a comunidade LGBTQI+. Essa decisão vem em decorrência de uma reação à histórica intolerância que a sociedade brasileira tem contra esses grupos, como é exposto no filme.

          O julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão abordada no presente texto tinha o objetivo de trazer materialidade mais efetiva para os direitos de segurança, dignidade, dentre outros, para o grupo LGBTQI+, que apresenta uma enorme fragilidade perante o resto do ordenamento social, em virtude da presença de inúmeros indivíduos que não aceitam formas diferentes de gênero e sexualidade instituídas como “normais”, a cisgeneridade e a heterossexualidade. Um exemplo dessa falta de aceitação seria o homem que dirigiu ofensas à Madame Satã após uma de suas performance.

          Ademais, o enquadramento de crimes de homofobia dentro de uma Lei do Racismo se dá por uma consistente analogia entre ambas as formas de discriminação. O racismo é uma das maiores doenças sociais que assola a sociedade contemporânea. É perpetuada contra uma parcela que fora historicamente marginalizada e excluída da sociedade, além de fortemente oprimida por aqueles que detinham o poder. Pode ser observado na literatura, como as humilhações e agressões sofridas pelo personagem Prudêncio, da obra “Memórias póstumas de Brás Cubas”, de Machado de Assis, ou na submissão e inferiorização que Bertoleza, do livro “O Cortiço”, de Aluízio de Azevedo, enfrenta em sua vida.

          Analisando a questão das populações que compõem a comunidade LGBT, como fora anteriormente explanado, elas também sofrem um processo de exclusão social e de preconceito por parte de uma parcela de caráter mais conservador da sociedade, havendo analogia pelo fato de ambos os grupos se caracterizarem como minorias injustiçadas e historicamente excluídas.

          O fato do fenômeno da homofobia ser um problema tão intrínseco à sociedade brasileira faz com que seja necessário coloca-lo como uma pauta prioritária dentro dos debates sociológicos e jurídicos do meio acadêmico, haja vista o pioneirismo que o mesmo naturalmente possui para catalisar profundas mudanças sociais. Por conta dessa possibilidade, converte-se em uma responsabilidade este tema ser profundamente debatido, já que silenciar-se perante esta grave crise que gays, lésbicas, transexuais e outros grupos sofrem seria uma forma de contribuir para que este problema alastre-se.

          Martin Luther King Junior, ícone da luta pelos direitos civis nos Estados Unidos, em uma de suas máximas, dizia: “O que mais me preocupa não é o grito dos maus, mas o silêncio dos bons”.

          Por conta disso foi realizado um debate acerca do filme Madame Satã, como parte da programação da VI semana da gênero e sexualidade do Centro Acadêmico de Direito da Unesp. Nele foram abordados alguns aspectos da obra, da vida de João Francisco, assim como vários dos desafios que ele passou em decorrência de ser quem era e de um dialogo com o cotidiano dos grupos que vivem a margem da sociedade brasileira. O fato de o debate ter como protagonistas duas convidadas transexuais, advindas da Unesp de Araraquara, fez com que fosse possível que o publico tivesse contato com uma ótica de pessoas que vivem esse tipo de dificuldade na pele diariamente.

          Elas também falaram sobre sua vivencia e de projetos que fazem parte e que têm o objetivo de trazer uma maior inclusão para pessoas da comunidade LGBTQI+, através de manifestações culturais e artísticas, trazendo visibilidade para esses indivíduos perante a sociedade.

          Foi um debate de enorme importância e enriquecimento, não só por seu caráter cultural, pelo conteúdo da obra e da história real pela qual passou João Francisco, como pela pauta da opressão sofrida pela comunidade LGBTQI+. Apesar de não ser algo com poder suficiente para modificar completamente a estrutura social e fazer com que esse problema se extinga, é uma maneira de iniciar uma síntese de ideias para pensar caminhos e possibilidades para que propostas mais elaboradas sejam feitas com o objetivo de acabar com esse problema ao curto, médio e longo prazo. Com isso, poderemos viver em uma sociedade onde todos possam expressar seu amor de maneiras diversas sem temer retaliações por decorrência disso.

João Lucas Albuquerque Vieira
Unesp - Campus de Franca
Direito Matutino


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