A homotransfobia é um problema que gera inúmeras
consequências para as populações pertencentes ao grupo identificado à
comunidade LGBTQI+, manifestando-se em dimensões psicológicas, morais, sociais
e físicas, através de uma incomensurável agressividade.
O Brasil possui um número extremamente elevado de
ataques contra esses grupos, assim como atitudes preconceituosas, exclusões e manifestações
de intolerância, sendo estes fatores que fazem com que muitos desenvolvam
sérios problemas psicológicos, como a depressão, enfrentem
dificuldades para inserirem-se no mercado laboral ou no meio acadêmico, levando
muitos ao suicídio.
Sendo o cinema uma elegante e acessível forma de
arte, é uma maneira eficiente de manifestar ideias, assim como denunciar
situações que ocorrem dentro de nossa sociedade que não deveriam ser tidas como
normais. Dentro desta concepção, o filme Madame Satã, de 2002, dirigido por
Karim Aïnouz, atua como uma forma de denunciar as opressões exercidas contra alguns
dos grupos mais marginalizados e oprimidos pela sociedade, em especial os homossexuais. Embora o filme se passe no Rio de Janeiro da década
de 1930, essas opressões se manifestam em várias localidades do mundo,
inclusive no Brasil, até os dias de hoje.
O filme conta a história de João Francisco, interpretado
por Lázaro Ramo, um homem negro, pobre, homossexual, morador de um cortiço na
periferia do Rio de Janeiro, frequentador da boemia carioca da época, ao lado
de prostituas, gays, alcoólatras e outros grupos marginalizados. É um ótimo
lutador, utilizando-se da capoeira como uma maneira de defender-se quando se
encontra perante alguma ameaça. Apresenta uma ótima ambientação, mostrando bem a
realidade de uma significativa parcela da população da época.
João é
constantemente submetido a humilhações e constrangimentos por conta de suas
características, principalmente por sua sexualidade, o que acaba fazendo com
que o mesmo tenha ataques de fúria recorrentes, como uma forma de resposta
contra a sociedade por todas as injurias as quais é submetido.
A partir de determinado ponto do filme, João começa
a realizar performances artísticas transformistas, já que sempre fora um
apreciador de diversas formas de arte, adotando o nome artístico de Madame
Satã. O protagonista acaba sofrendo um ataque homofóbico após uma de suas apresentações,
mesmo sem ter melindrado a ninguém. Um senhor começa a lhe insultar e
dirigir-lhe palavras ofensivas como uma forma de externar seus preconceitos. Esse tipo de atitude foi ignorada pela sociedade e pelo poder publico por séculos, entretanto, esta conjuntura está modificando-se.
Destarte, pode-se realizar um dialogo entre as
situações que o filme expõe com a realidade, já que milhões de pessoas sofrem
situações semelhantes e igualmente degradantes dentro da sociedade brasileira.
Dentro disso, o STF julgou em 2019 a criminalização
de ações de homofobia, semelhantes às qual João Francisco é submetido
rotineiramente. Condutas como a supracitada seriam enquadradas dentro da Lei do
Racismo, que tipifica crimes de caráter discriminatório como inafiançáveis e
imprescritíveis, e passou, em junho, a incluir sanções por discriminações
contra gays, lésbicas, transexuais, travestis e outros grupos que integram a
comunidade LGBTQI+. Essa decisão vem em decorrência de uma reação à histórica
intolerância que a sociedade brasileira tem contra esses grupos, como é exposto
no filme.
O julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade
por Omissão abordada no presente texto tinha o objetivo de trazer materialidade
mais efetiva para os direitos de segurança, dignidade, dentre outros, para o
grupo LGBTQI+, que apresenta uma enorme fragilidade perante o resto do
ordenamento social, em virtude da presença de inúmeros indivíduos que não
aceitam formas diferentes de gênero e sexualidade instituídas como “normais”, a cisgeneridade e a heterossexualidade. Um exemplo dessa
falta de aceitação seria o homem que dirigiu ofensas à Madame Satã após uma de
suas performance.
Ademais, o enquadramento de crimes de homofobia
dentro de uma Lei do Racismo se dá por uma consistente
analogia entre ambas as formas de discriminação. O racismo é uma das maiores
doenças sociais que assola a sociedade contemporânea. É perpetuada contra uma
parcela que fora historicamente marginalizada e excluída da sociedade, além de
fortemente oprimida por aqueles que detinham o poder. Pode ser observado na
literatura, como as humilhações e agressões sofridas pelo personagem Prudêncio,
da obra “Memórias póstumas de Brás Cubas”, de Machado de Assis, ou na submissão
e inferiorização que Bertoleza, do livro “O Cortiço”, de Aluízio de Azevedo, enfrenta
em sua vida.
Analisando a questão das populações que compõem a
comunidade LGBT, como fora anteriormente explanado, elas também sofrem um
processo de exclusão social e de preconceito por parte de uma parcela de
caráter mais conservador da sociedade, havendo analogia pelo fato de ambos os
grupos se caracterizarem como minorias injustiçadas e historicamente excluídas.
O fato do fenômeno da homofobia ser um problema tão intrínseco
à sociedade brasileira faz com que seja necessário coloca-lo como uma pauta
prioritária dentro dos debates sociológicos e jurídicos do meio acadêmico, haja
vista o pioneirismo que o mesmo naturalmente possui para catalisar profundas
mudanças sociais. Por conta dessa possibilidade, converte-se em uma
responsabilidade este tema ser profundamente debatido, já que silenciar-se
perante esta grave crise que gays, lésbicas, transexuais e outros grupos sofrem
seria uma forma de contribuir para que este problema alastre-se.
Martin Luther King Junior, ícone da luta pelos
direitos civis nos Estados Unidos, em uma de suas máximas, dizia: “O que mais
me preocupa não é o grito dos maus, mas o silêncio dos bons”.
Por conta disso foi realizado um debate acerca do
filme Madame Satã, como parte da programação da VI semana da gênero e sexualidade do Centro Acadêmico de Direito da Unesp. Nele foram abordados alguns aspectos da obra, da vida de
João Francisco, assim como vários dos desafios que ele passou em decorrência de
ser quem era e de um dialogo com o cotidiano dos grupos que vivem a margem da
sociedade brasileira. O fato de o debate ter como protagonistas duas convidadas
transexuais, advindas da Unesp de Araraquara, fez com que fosse possível que o
publico tivesse contato com uma ótica de pessoas que vivem esse tipo de
dificuldade na pele diariamente.
Elas também falaram sobre sua vivencia e de projetos
que fazem parte e que têm o objetivo de trazer uma maior inclusão para pessoas
da comunidade LGBTQI+, através de manifestações culturais e artísticas,
trazendo visibilidade para esses indivíduos perante a sociedade.
Foi um debate de enorme importância e
enriquecimento, não só por seu caráter cultural, pelo conteúdo da obra e da
história real pela qual passou João Francisco, como pela pauta da opressão
sofrida pela comunidade LGBTQI+. Apesar de não ser algo com poder suficiente
para modificar completamente a estrutura social e fazer com que esse problema
se extinga, é uma maneira de iniciar uma síntese de ideias para pensar caminhos
e possibilidades para que propostas mais elaboradas sejam feitas com o objetivo
de acabar com esse problema ao curto, médio e longo prazo. Com isso, poderemos
viver em uma sociedade onde todos possam expressar seu amor de maneiras
diversas sem temer retaliações por decorrência disso.
João Lucas Albuquerque Vieira
Unesp - Campus de Franca
Direito Matutino
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