“A
paz não existe. Paz é coisa de branco, de rico, de homem cis. A gente não quer
paz.”, disse Vita Pereira, integrante e uma das fundadoras
do coletivo Casixtranha, de Araraquara, no cinedebate da VI Semana de Sexualidade
e Gênero da Unesp Franca. O evento discutiu o filme de Karim Aïnouz, “Madame Satã”, à luz de Vita
Pereira e Maria da Maré, duas estudantes da FCLAR - Faculdade de Ciências e
Letras da Unesp Araraquara, ambas travestis e participantes do coletivo que
visa integrar e promover intervenções culturais multiartísticas com a temática
LGBTQIA+, unindo a arte e a militância para transformação social e combate ao
preconceito. A discussão foi repleta de relatos da realidade nua, crua e cruel
das travestis brasileiras, a partir de vivência das palestrantes.
A
fala com que inicio esta postagem é umas das muitas que, pra mim, causou
profundo impacto. Retrata a luta e a força constantes da população que luta por
igualdade de gênero e orientação sexual, mostrando que, infelizmente, se o que
recebem é violência, não há meio de responder com serenidade. Cospe na
romantização do discurso militante e trata de uma luta que é política, mas além
de tudo também é física, por sobrevivência. “Sobrevivência? Eu não quero
sobreviver, quero viver!” disse Vita, em um discurso sobre a omissão do Estado
na garantia de direitos básicos como saúde, educação e expressão da população travesti
e transsexual no Brasil. Ela associou a realidade atual à retratada em Madame Satã,
que, apesar de se situar da década de 1930, ainda expressa aspectos da
contemporaneidade no que diz respeito à marginalização que sofre na pele. No
filme, as personagens principais vivem em pequenas comunidades afastadas do
centro do Rio de Janeiro, e não recebem nenhum amparo do Estado na garantia de
direitos básicos, e, ao contrário, este somente se mostra presente na repressão
policial e discricionariedade do sistema judiciário para com a população
LGBTQIA+. Paralelamente, Vita conta que recebe inúmeros pedidos de ajuda de
pessoas não cis que foram expulsas de casa e não contam com nenhuma garantia de
subsídio de estudo ou oportunidade de trabalho, nem pela própria família, e
muito menos pelo Estado.
As
palestrantes relatam que incidência da população travesti na prostituição é
alta, e, com isso, são inseridas em um contexto de imensurável violência, tanto
pela população civil como pelos policiais. Vita conta que, diversas vezes, viu
amigas travestis apanharem de policiais sem que estivessem fazendo nada de
ilícito. Contou um caso em que um homem teve relações sexuais com uma
prostituta travesti e, ao final, não quis pagá-la e partiu para agredi-la. Outras
5 travestis estavam no local e reagiram quebrando o carro do sujeito, para que
ele parasse de bater em sua colega. Por isso, o homem prestou queixa na
delegacia e todas as travestis envolvidas foram responsabilizadas. A justiça
considerou, portanto, o depoimento de um homem cis, em detrimento do depoimento
de 6 pessoas travestis, e o homem não foi responsabilizado pelo crime de
agressão. Isso expressa o quanto o Estado é discricionário e preconceituoso em
relação à população travesti no Brasil.
Maria
relatou que, ainda hoje, as travestis costumam andar com navalhas nas bolsas,
isso porque, desde a década de 80 com o aumento da disseminação do vírus HIV, os
LGBTQIA+ foram erroneamente associados à doença, e, quando se deparavam com uma
situação de violência nas ruas, passaram a cortar os próprios corpos como
estratégia para garantir que agressores não se aproximassem, por medo da contaminação
com o sangue. A gravidade do relato de Maria sobre um cenário que ainda
persiste, ascende a urgência da discussão sobre a criminalização da LGBTfobia.
Apesar de as palestrantes não tratarem diretamente sobre o tema, seus
depoimentos deixaram clara a omissão do poder judiciário na garantia de combate
ao preconceito.
Há
de se pensar, diante desse contexto, se a simples consideração da LGBTfobia
como crime iria mudar o comportamento das instâncias policiais e das
delegacias, que colaboram para o preconceito e desprotegem essa população impedindo
assim, muitas vezes, que denúncias desses casos sejam feitas, e, quando
acontecem, muitas nem cheguam a julgamento. Os relatos das palestrantes me fazem pensar que
tal criminalização seria apenas uma maneira de o sistema judiciário fingir para
a população civil estar fazendo algo pelos LGBTQIA+, mas nada mudar de fato.
Carolina Juabre. Matutino
Nenhum comentário:
Postar um comentário