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segunda-feira, 7 de outubro de 2019

Viver, não sobreviver


“A paz não existe. Paz é coisa de branco, de rico, de homem cis. A gente não quer paz.”,  disse  Vita Pereira, integrante e uma das fundadoras do coletivo Casixtranha, de Araraquara, no cinedebate da VI Semana de Sexualidade e Gênero da Unesp Franca. O evento discutiu o filme de Karim Aïnouz, “Madame Satã”, à luz de Vita Pereira e Maria da Maré, duas estudantes da FCLAR - Faculdade de Ciências e Letras da Unesp Araraquara, ambas travestis e participantes do coletivo que visa integrar e promover intervenções culturais multiartísticas com a temática LGBTQIA+, unindo a arte e a militância para transformação social e combate ao preconceito. A discussão foi repleta de relatos da realidade nua, crua e cruel das travestis brasileiras, a partir de vivência das palestrantes.
A fala com que inicio esta postagem é umas das muitas que, pra mim, causou profundo impacto. Retrata a luta e a força constantes da população que luta por igualdade de gênero e orientação sexual, mostrando que, infelizmente, se o que recebem é violência, não há meio de responder com serenidade. Cospe na romantização do discurso militante e trata de uma luta que é política, mas além de tudo também é física, por sobrevivência. “Sobrevivência? Eu não quero sobreviver, quero viver!” disse Vita, em um discurso sobre a omissão do Estado na garantia de direitos básicos como saúde, educação e expressão da população travesti e transsexual no Brasil. Ela associou a realidade atual à retratada em Madame Satã, que, apesar de se situar da década de 1930, ainda expressa aspectos da contemporaneidade no que diz respeito à marginalização que sofre na pele. No filme, as personagens principais vivem em pequenas comunidades afastadas do centro do Rio de Janeiro, e não recebem nenhum amparo do Estado na garantia de direitos básicos, e, ao contrário, este somente se mostra presente na repressão policial e discricionariedade do sistema judiciário para com a população LGBTQIA+. Paralelamente, Vita conta que recebe inúmeros pedidos de ajuda de pessoas não cis que foram expulsas de casa e não contam com nenhuma garantia de subsídio de estudo ou oportunidade de trabalho, nem pela própria família, e muito menos pelo Estado.
As palestrantes relatam que incidência da população travesti na prostituição é alta, e, com isso, são inseridas em um contexto de imensurável violência, tanto pela população civil como pelos policiais. Vita conta que, diversas vezes, viu amigas travestis apanharem de policiais sem que estivessem fazendo nada de ilícito. Contou um caso em que um homem teve relações sexuais com uma prostituta travesti e, ao final, não quis pagá-la e partiu para agredi-la. Outras 5 travestis estavam no local e reagiram quebrando o carro do sujeito, para que ele parasse de bater em sua colega. Por isso, o homem prestou queixa na delegacia e todas as travestis envolvidas foram responsabilizadas. A justiça considerou, portanto, o depoimento de um homem cis, em detrimento do depoimento de 6 pessoas travestis, e o homem não foi responsabilizado pelo crime de agressão. Isso expressa o quanto o Estado é discricionário e preconceituoso em relação à população travesti no Brasil.
Maria relatou que, ainda hoje, as travestis costumam andar com navalhas nas bolsas, isso porque, desde a década de 80 com o aumento da disseminação do vírus HIV, os LGBTQIA+ foram erroneamente associados à doença, e, quando se deparavam com uma situação de violência nas ruas, passaram a cortar os próprios corpos como estratégia para garantir que agressores não se aproximassem, por medo da contaminação com o sangue. A gravidade do relato de Maria sobre um cenário que ainda persiste, ascende a urgência da discussão sobre a criminalização da LGBTfobia. Apesar de as palestrantes não tratarem diretamente sobre o tema, seus depoimentos deixaram clara a omissão do poder judiciário na garantia de combate ao preconceito.  
Há de se pensar, diante desse contexto, se a simples consideração da LGBTfobia como crime iria mudar o comportamento das instâncias policiais e das delegacias, que colaboram para o preconceito e desprotegem essa população impedindo assim, muitas vezes, que denúncias desses casos sejam feitas, e, quando acontecem, muitas nem cheguam a julgamento.  Os relatos das palestrantes me fazem pensar que tal criminalização seria apenas uma maneira de o sistema judiciário fingir para a população civil estar fazendo algo pelos LGBTQIA+, mas nada mudar de fato. 


Carolina Juabre. Matutino

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