Madame Satã foi um ícone pícaro e minoritário do século XX. Em meio a todo glamour das inúmeras incursões criminosas e aparições teatrais, uma amostra sólida da homofobia é vista como arraigada perigosamente em toda a estrutura social brasileira. Do nordeste às ruas cariocas, do crime ao teatro e da prisão ao sambódromo, Satã fora sempre um ente dispare da normatividade civil; abrigado em sua "fantasia" transformista, era realmente apenas uma figura ilustrativa, não poderia ser um indivíduo comum apenas por suas afeições diferentes da ordem heterossexual. Em 1976, morre solitário, permeado pelo mistério entre um câncer pulmonar ou a AIDS. O estado do Rio de Janeiro buscou ocultar ao máximo a morte do criminoso mais estranho possível, "que tinha gosto por ser mulher". Contudo, em terras paulistas Satã ganha a capa da Folha de São Paulo mesmo tendo assinado, anos atrás, um termo de compromisso de não pisar mais nas disposições territoriais desse estado. Na glória sofrida de uma estrela artística combatida, o Brasil mostra um passado sombrio que busca sua iluminação.
João Francisco dos Santos nasceu em pernambuco em 25 de fevereiro de 1900 (data escolhida por ele na falta de exatidão) e logo no começo da vida fora trocado por uma égua, usado de escravo, enganado pelas esperanças de um estado desenvolvido que traria sua riqueza, tomado como escravo novamente e apresentado ao mundo da riqueza fácil, um projeto de malandro. No entanto, apresentado desde os 13 anos ao mundo da sodomia, reconheceu-se logo homossexual e em uma brilhante frase acerca de sua opção sexual, ao citar os bacanais dos quais participava relatou: "...gostava mais e ser bixa, por isso sou bixa". Anos depois, em 1928 foi apresentado ao teatro, sua eterna paixão. Contudo, quando tudo parecia guinar para longe do passado sofrido, a homofobia fez-se presente e condenou João ao cárcere. Em uma noite, estava se divertindo em um bar na Lapa quando fora acometido de vários xingamentos provenientes de um guarda noturno que incessantemente chamava-o de "viado", e ainda foi além. agrediu-o com o cassetete e ordenou que deixasse o local. João Francisco obedeceu, mas no caminho ao se enraivecer pela humilhação passada, volta ao bar e atira no vigilante. Daí então sua vida torna-se quase constante na prisão por meio da vingança de outras autoridade e pelo preconceito sempre presente na mente cível. Uma estrela condenada pela aversão latente de uma sociedade pobre de mente.
Destarte, a criminalização da homofobia sinalizada e sentenciada na segunda década do século XXI é uma ferramenta tardia que integra toda a sofreguidão dos séculos passados; entes brilhantes obscurecidos pelo preconceito que os sufocou. Satã foi premiado como melhor transformista do Rio de Janeiro em um desfile carioca, mas teve seu reconhecimento dentro de uma delegacia, pela segurança civil estar debaixo da heteronormatividade, onde inclusive recebeu o nome de Madame Satã do próprio delegado por seu traje de um morcego pernambucano. A militância da causa não é e nunca foi o bastante, não importa quanto se mostre presente a diferença e quanto se mostre normal mesmo na não semelhança; o preconceito sempre encontra argumentos para combater, agredir e não aceitar qualquer que seja a opção díspar da própria. Deste modo, quando a vida de um ser corre perigo, quando a saúde mental do indivíduo encontra entrave e quando as suas atividades profissionais e acadêmicas sofrem sanção, o crime é descoberto, o crime é imperativamente mostrado, o crime é reconhecido como sempre existente, e então o crime urge ser sufocado.
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