No artigo “O primado do direito e as exclusões abissais: reconstruir velhos conceitos, desafiar o cânone”, de Sara Araújo, a socióloga afirma que existe uma linha abissal que divide de forma epistemológica os seres humanos entre Norte e Sul. Essa divisão se refere à um ideal eurocêntrico, cuja essência é originada do que outrora conhecemos por colonialismo, fazendo com que nossos costumes, inclusive os jurídicos, sejam influenciados por valores de antigos colonizadores para com os colonizados. Esse ideal não necessariamente diz respeito à questão geopolítica, mas também se diz sobre daqueles que produzem para o sistema capitalista e daqueles que não colaboram diretamente para com o sistema, daqueles que oprimem e daqueles que são oprimidos, etc.
Pode-se notar como exemplo o caso nº CRSJ Nº 70003434388/2001, em que trabalhadores rurais adeptos do Movimento dos Sem Terra (MST) estavam sendo julgados pela ocupação da Fazenda Primavara. Em meio ao julgamento, os desembargadores favoráveis defenderam a função social da propriedade, prevista no art. 5º, inciso XXIII da Constituição Federal, enquanto os contrários defenderam o direito à propriedade, desprezando claramente o fato de que boa parte das áreas com pretensão de ocupação estavam sendo improdutivas. Concomitante, Sara Araújo afirma que um dos ideais capitalistas e eurocêntricos no sistema jurídico consiste na supervalorização da produção, o que ignora a condição racional da sociedade, que deveria ver o ser humano como trabalhador.
“A monocultura jurídica despreza os direitos locais e os universos jurídicos que regem formas de produtividade não capitalistas e classifica como irrelevantes, locais, improdutivas, inferiores e primitivas as formulações jurídicas não modernas.” (Sara Araújo)
“[...] um mundo em que a linha divisória entre os humanos e os outros menos humanos é uma linha entre os que trabalham na terra e os que não. Este mundo é habitado por subjugados de um lado e cidadãos no outro; a sua vida é regulada pela lei costumeira de um lado e a lei moderna do outro; as suas crenças são rejeitadas como pagãs de um lado, mas mantêm o estatuto da religião no outro; os momentos estilizados nas vidas quotidianas são considerados rituais de um lado e cultura no outro; a sua atividade criativa é considerada artesanato de um lado e glorificada como arte do outro; a sua comunicação verbal é diminuída como conversa vernacular de um lado e elevada como discurso linguístico do outro; em suma, o mundo dos “selvagens” barricado, nos atos e nas palavras, do mundo dos “civilizados” “ (Mamdani, 1996: 61).
Esmiuçando esse caso, percebe-se que dentre os votos, o argumento que preza pelo direito à propriedade que visa o exercício da sua função social prevaleceu ao argumento do direito à propriedade privada costumeiro. Visto isso, nota-se que de certa forma há uma evolução ideológica no “sistema jurídico do Sul”, em que houve o desprendimento daquilo que Sara Araújo julga como “Norte” no nosso sistema jurídico, evidenciando também, o início de uma gradual independência do eurocentrismo jurídico.
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