Segundo Sara Araújo, o modelo jurídico vigente no modelo político
neoliberal, que se apresenta como técnico e não político, respeita mais os
mercados do que as pessoas. Tal pensamento pode ser percebido na liminar
concedida pela juíza, garantindo a reintegração. Afinal, sob uma perspectiva “mercadológica”
a terra vale por quanto produz e não por quantos vivem dela. Se um
latifundiário, por meio do uso de tecnologias avançadas, produz em quantidade
recorde com o mínimo de mão de obra enquanto um grupo de agricultores produz
apenas para subsistência dos que ali vivem, o Direito calcado na razão
metonímica não ponderará antes de ceder a terra para o que produz mais. Dessa
forma, assim como defende Sara Araújo o Direito se torna “um instrumento de
expansão do colonialismo e do capitalismo, sendo responsável pela
invisibilização jurídica e pelo silenciamento de sujeitos”.
Analisando os votos na análise do agravo de instrumento,
se destaca o voto do relator, que venceu por 2 votos à 1, e justificou, usando
elementos do Direito e da construção jurídica, a legitimidade do indeferimento
da liminar reintegratória. Diz o magistrado: “O Juiz, como intérprete da norma
jurídica (...) deve adequar o Direito positivo a cada fato concreto que
lhe venha a ser submetido. Há de buscar novos rumos, não nos
satisfazendo com a interpretação jurídica tradicional. Periodicamente é
necessário revisar conceitos, adequando-os aos novos fatos, de nova época,
e sob contexto diverso daqueles existentes”. Se percebe no voto do
desembargador uma tentativa de ir além da interpretação “técnica” do Direito,
em convergência com o conceito de Interlegalidade de Boaventura de Souza
Santos: “vigência de um direito poroso formado por múltiplas redes de
legalidade, de tal modo intrincadas e diversas, que é possível, na mesma ação
de cumprimento de uma regra, estar a transgredir outra”, o magistrado não
propõe abandonar o ordenamento jurídico vigente, mas inseri-lo em um contexto
de outras legalidades.
Poderia se argumentar, por outro lado,
que o voto do desembargador não entra em sinergia com a ideia de “Diversidade
de Direitos” de Sara Araújo, mas abandona o Direito vigente buscando construir
outro por si só. Em determinado momento diz o desembargador: “O sistema judiciário se forjou na construção
judicial, e em terras locais, se pretende impedi-la, sob o argumento de
arranhão da lei. ”. A afirmação poderia ser devolvida às avessas: Se pretende
impedir a lei sob argumento de arranhão na construção judicial. Sob esse
raciocínio, surgem questões: Quem tem legitimidade para guiar o ordenamento
jurídico? Direito é lei? Direito é o que os tribunais dizem que ele é? O
raciocínio de Sara Araújo aponta caminhos para as respostas: todas afirmativas
e negativas ao mesmo tempo. Isso é a diversidade de Direitos: é aceitar a todas
essas respostas sem transgredir umas às outras.
Dessa
forma, cabe ao jurista compreender que no mesmo ordenamento jurídico em que se
encontrava o artigo 927 do Código de Processo Civil, que incumbia o autor apenas
de comprovar a posse, a turbação, a data da turbação, a continuação da posse e
a sua perda para a expedição do mandato de reintegração também já se encontravam
o parágrafo XXIII do artigo 5º da Constituição Federal que prevê que a
propriedade cumprirá sua função social e a lei 8629 de 1993 que prevê os
procedimentos para desapropriação em caso de descumprimento da função social.
Tanto a liminar da juíza de Passo Fundo que garantiu a reintegração quanto a decisão
judicial que a indeferiu foram baseadas na lei, dessa forma, como disse Sara
Araújo, o ordenamento jurídico começa a lentamente confrontar a “concepção liberal do direito e da
justiça com a diversidade de direitos e de justiças que existem no mundo”.
Pedro Augusto Ferreira Bisinotto
Direito-Noturno
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