A DECISÃO
DO STF SOBRE O ENSINO RELIGIOSO NAS ESCOLAS PÚBLICAS SOB A PERSPECTIVA DE
HERMENÊUTICA DIATÓPICA
Na
Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4.439, proposta pela Procuradoria
Geral da República (PGR), o Supremo Tribunal Federal (STF) analisou mais
detidamente a questão referente ao ensino religioso nas escolas públicas. Ao
ingressar com a ação, a PGR questionou a constitucionalidade do artigo 33, caput
e §§ 1º e 2º, da Lei nº 9.394/96 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional),
e do artigo 11, § 1º do “Acordo entre o Governo da República Federativa do
Brasil e a Santa Sé relativo ao Estatuto Jurídico da Igreja Católica no Brasil,
mais conhecido como “Acordo Brasil-Santa Sé". O pedido da PGR residiu na busca
da interpretação conforme à CF dos referidos dispositivos legais, no sentido de
estabelecer que o ensino religioso nas escolas públicas somente poderia ter
natureza não confessional e que deveria ser proibida a contratação de
professores que representassem alguma confissão religiosa.
Os
argumentos que fundamentam o pedido da PGR são de que a única maneira de
compatibilizar a laicidade estatal e a permissão constitucional de ensino
religioso é por meio do modelo não-confessional, que não privilegie uma
religião específica e que não seja ministrada por profissionais ligados às
igrejas ou confissões religiosas. Desse modo, a PGR defendeu que tanto o modelo
confessional quanto o modelo interconfessional (ecumênico), seriam contrários
ao princípio constitucional que estabelece a laicidade do Estado brasileiro.
As
contraposições aos argumentos apresentados pela PGR podem ser sintetizadas em três
pontos principais. Em primeiro lugar, há o entendimento de que os mandamentos
constitucionais e legais de vedação ao proselitismo e da laicidade do Estado
não permitem uma interpretação restritiva de que o modelo não-confessional é o
único que pode ser admitido. Segundo esse viés, os três modelos (confessional,
não-confessional e interconfessional) são admitidos pela CF. Em segundo lugar, visto
que a matrícula na disciplina é facultativa, garante-se, a um só tempo, a liberdade
dos indivíduos e o mandamento legal de que não haverá proselitismo. Em terceiro
lugar, como a CF garante a liberdade de crença, a diversidade cultural
religiosa e à pluralidade confessional, a recusa em ofertar o ensino de determinada
religião é que violaria a liberdade religiosa, visto que “o ensino religioso a
ser ministrado nas escolas públicas não tem cunho aconfessional, pois, se
possuísse essa natureza, não haveria razão para que fosse de matrícula
facultativa aos alunos”.
A
importante decisão do STF sobre a questão do ensino religioso nas escolas
públicas enquadra-se no contexto das distintas concepções sobre os direitos
humanos (DHs). Conquanto um dos princípios que estruturam a teoria sobre os DHs
seja a universalidade, autores, como Boaventura de Sousa Santos (BSS), demonstram
que há limites práticos à concretização desse princípio, em virtude das
idiossincrasias culturais de cada povo. Desse modo, segundo BSS, faz-se
necessário aceitar essas resistências culturais como ponto de partida para
conseguir a implementação de uma pauta sobre DHs.
No
artigo “Direitos Humanos: o desafio da interculturalidade”, Boaventura indica
que “enquanto forem concebidos como direitos humanos universais, os Direitos
Humanos tenderão a operar como localismo globalizado e, portanto, como forma de
globalização hegemônica.” Diante dessa afirmativa, surge um questionamento: qual
o caminho para concretizar uma pauta de DHs? BSS responde que “para poder
operar como forma de cosmopolitismo, como globalização contra-hegemônica, os
Direitos Humanos têm de ser reconceitualizados como multiculturais”
Ciente
das tensões entre o local e o global e de suas implicações, Boaventura propõe que
sejam levados em conta, em cada sociedade, os topoi culturais, para que
haja a possibilidade de implementar a pauta dos DHs. Os topoi podem ser
compreendidos como “lugares comuns retóricos mais abrangentes de determinada
cultura, que funcionam como premissas de argumentação que, por sua evidência, não
se discutem e tornam possíveis a produção e a troca de argumentos.” Ao constatar que “compreender determinada
cultura a partir dos topoi de outra cultura é tarefa muito difícil”, BSS
propõe a concepção da hermenêutica diatópica, que busca demonstrar as
incompletudes de cada topoi, por meio da compreensão mútua entre os
povos de suas próprias incompletudes. Dessa maneira, esse processo hermenêutico
contribuiria para permitir a definição de uma pauta mínima sobre DHs em cada
nação.
Após
a análise da decisão do STF e da teoria de Boaventura, é possível inferir que os
Ministros do STF, ao decidirem pela improcedência da ação, permitindo assim a
adoção dos modelos confessional, não-confessional e interconfessional para o
ensino religioso, compreenderam que a nação brasileira, cujo topoi é majoritariamente
cristão, somente estaria aberto um modelo que contemplasse a diversidade
cultural constituinte do povo brasileiro, tanto no que se refere à liberdade dos conteúdos religiosos a serem ensinados quanto ao método de ensino desses conteúdos.
Kleber – RA 191222471 -
UNESP - Direito - 1º ano DIURNO
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