Bacon e Descartes decerto construíram uma espécie de pensamento que despertou atenções. Se por acaso ele não surtiu efeito em curto prazo, veio a ter respeitável repercussão depois. Note-se pelo desenvolvimento, por Augusto Comte, da filosofia positiva. Na crença de que pouco precisa-se aqui discorrer sobre assuntos mais gerais e elucidativos acerca dela, atenhamo-nos àquilo que podemos retirar de sabedoria, e não mera retórica obscura.
Comte assume o compromisso de discorrer acerca do desenvolvimento do pensamento humano, que teria passado por três momentos, nessa ordem: teológico, metafísico e positivo. Ele afirma que aqueles foram estágios essenciais para se chegar a esse, que é o estágio definitivo do pensamento humano. Ora, como a filosofia positiva funda-se no raciocínio e na observação, parece-nos muito válido que assim o seja. Mas, agora, coloquemos uma simples questão em pauta: é a filosofia positiva capaz de explicar tudo, através dos métodos preconizados por Comte? Ora, veja bem. Alguns conhecimentos podem de fato serem restritos aos seres humanos. Mas não sabemos quais são eles. E por isso não há como dizer até onde podemos estender nosso intelecto. Podem argumentar que o cérebro possui um limite. O contra-argumento seria: e qual é ele? Diriam: o uso de 100% da capacidade cerebral. Sabe-se que usamos apenas cerca de um décimo dessa capacidade. Bem, mas enquanto não for atingido essa capacidade total de processamento, não poderemos saber o que se revela inteligível a nós e o que permanece obscuro.E será que de fato algo permanecerá obscuro? Mas onde queremos chegar é: ainda há espaço para se avançar mais estágios.de pensamento. Mas observe-se: pode-se ainda avançar estágios de pensamento, isso pressupõe que deva-se abandonar os métodos da filosofia positiva para se chegar a uma nova espécie de filosofia, dotada de características únicas e possivelmente, provavelmente, mais inteligentes. Comte deixa claro que ela não abrange todas as ordens de fenômenos, mas parece negar-se que outra filosofia que não a positiva seria capaz de abrange-los por completo. Se algo escapa ao raciocínio apresentado, que seja ignorado. Do contrário, é uma completa arrogância declarar à filosofia positiva uma honra que não lhe cabe. Contudo, que se registre o valor dessa filosofia, não o negamos de maneira alguma. É ela decididamente um marco fundamental e evidente para o avanço das ciências. Apenas deve-se ter cautela quanto à sua completa aceitação.
Comte deixa claro que a sua filosofia busca as leis que regem os fenômenos, e não as causas deles. Para tanto, alega que as causas primeiras e finais, absolutas, não podem ser encontradas. Ora, a isso aplicamos raciocínio semelhante ao último. Ainda não podemos obter noções absolutas, mas negar que jamais poderemos desvenda-lãs causa, no mínimo, inquietação.
No que se refere à preocupação dele com a divisão intelectual do trabalho, é louvável sua idéia de integrar os diversos ramos da ciência positiva, o que seria feito pela criação de uma nova classe de cientistas “especializados em estudar generalidades”, o que parece ser um conceito abstrato, mas de fato é muito claro. Caberia a essa espécie de cientista ligar entre si os conhecimentos produzidos por aqueles homens mais dados ao estudo minucioso de determinado ramo do saber. Tem-se aí o modo de organização necessário para a inventividade sistemática. Surge uma idéia de ciência “utilitária“.
Mas eis que Comte entra numa análise social propriamente dita, e aí temos então a eclosão de algumas idéias estranhas. Comenta sobre a necessidade de reformulação do sistema educacional, que à época, na Europa, era “essencialmente teológica, metafísica e literária”, como escreve. Deveria ser implementada uma educação positiva, de caráter universal, isto é, seriam lecionadas generalidades, não se dispensados “os diversos estudo científicos especiais, que devem suceder à educação geral”, observa. Uma vontade muito adequada, considerando-se o a validade da sua crítica à divisão intelectual do trabalho.
Contudo, quando passa a uma análise social mais generalizada, destaca que a “grande crise política e moral das sociedades atuais provém, em última análise, da anarquia intelectual”, e que ela consiste na “profunda divergência entre todos os espíritos quanto a todas as máximas fundamentais”. Para mudar esse estado das nações, seria necessário “ideais gerais capazes de formar uma doutrina social comum”. Diz que “a desordem atual das inteligências vincula-se, em última análise, ao emprego simultâneo de três filosofias radicalmente incompatíveis: a filosofia teológica, a filosofia metafísica e a filosofia positiva”. Conclui que, pare fazer cessar o estado essencialmente revolucionário das nações à época, uma deveria prevalecer. Para ele, “a filosofia positiva é a única destinada a prevalecer”. Porque “a preferência tão pronunciada que quase todos os espíritos, desde os mais elevados até os mais vulgares, atribuem hoje aos conhecimentos positivos sobre as concepções vagas e místicas anuncia suficientemente a acolhida que receberá essa filosofia, quando adquirir a única qualidade que ainda lhe falta, um caráter de generalidade conveniente.
Do que foi (longamente) exposto, podemos observar, de novo, o caráter arrogante da filosofia positiva. Como ousa Comte dizer que apenas sua filosofia pode prevalecer? Talvez ele e mais uma elite possa louvar completamente essa filosofia, mas que não o diga dos “espíritos mais vulgares”. Alguns homens, possivelmente a maioria, preferem não ouvir a verdade (se podemos chamar o “produto” da filosofia positiva assim), justamente porque ela esclarece. Quantos são aqueles que, atualmente, ainda seguem uma religião? Ousam eles desconfiarem de seu Deus, mesmo não sendo ele uma idéia comprovada? E dessa fé na própria religião, não pode surgir uma cegueira, e provavelmente surge, que tolhe qualquer capacidade de fazer a apreciação de outros conhecimentos que tentam lhes transmitir mas que não são aqueles pregados por sua própria religião? Desse modo, estão mais atentos ao que lhes dita sua “divindade” do que pode lhes ser esclarecido pela ciência. E ainda, consideremos que tudo isso não passe de um pensamentozinho inválido. Lancemos outro: porque há de ser esse progresso material, essa alucinada corrida em busca das inovações, típica da filosofia positiva aquilo que a sociedade mais quer? Não é esse o espírito da filosofia de Comte? Talvez muitos tenham em seu coração a idéia de que sua vida teria sido mais plena de sentido caso pudessem ter uma pequena cabana num campo verde e pontilhado de belas macieiras. Como se nota, não é bem para esse lado que a nossa sociedade altamente desenvolvida tende. Ou discorda o leitor que possivelmente se encontra preso entre quatro paredes cujo único sinal de liberdade vem a ser uma pequena janela que ela mesma vem dar nos limites desprezíveis que suprimem também ao outro que está ali fora essa mesma liberdade? Nunca ansiou por uma vivência mais tranqüila, longe de todo esse dinamismo cosmopolita proporcionado pela ciência? Por isso é que talvez tivesse sido melhor permanecer um bruto, mas um bruto que se sentisse realizado em sua vida. E é então que parece surgir uma vontade intensa de dizer: “ao diabo com a filosofia positiva, ao diabo com o progresso”.