A tragédia
Antígone discute o conflito entre o Direito Natural – o Direito
considerado pelos antigos como sendo de origem divina e aceito ipso facto como
costumeiro ou consuetudinário – e o Direito que toma forma jurídica nas leis
estabelecidas pelo governante, tradicionalmente denominado Direito
Positivo.
A narrativa de
Sófocles segue a tradição mitológica. Após a desgraça de Édipo, seus dois
filhos, Etéocles e Polinice disputam a posse do trono. Trava-se a luta, perecendo
no mesmo dia os dois irmãos, ambos mortalmente feridos no duelo que travaram.
Creonte, impondo-se então como tirano de Tebas, resolve prestar honras fúnebres
a Etéocles, ao passo que proíbe, sob pena de morte, que se dê sepultura ao
corpo de Polinice, para que fique exposto às aves carniceiras aquele que
recorreu à aliança com os Argivos (povo inimigo) para conquistar o poder em sua
terra.
Antígone,
exemplo de amor fraternal, resolve expor-se ao perigo, e, contrariando o
decreto do tirano, presta ao infeliz Polinice, seu irmão, o piedoso serviço das
honras e dos rituais funerários, sob o risco de ser condenada à morte pela
transgressão. Quando interrogada por Creonte, que se considera duplamente
afrontado pelo desrespeito a uma lei em vigor e pela atitude criminosa vir de
uma mulher, Antígone responde:
"Sim,
porque não foi Júpiter que a promulgou; e a Justiça, a deusa que habita com as
divindades subterrâneas, jamais estabeleceu tal decreto entre os humanos; nem
eu creio que teu édito tenha força bastante para conferir a um mortal o poder
de infringir as leis divinas, que nunca foram escritas, mas são irrevogáveis;
não existem a partir de ontem, ou de hoje; são eternas sim! E ninguém sabe
desde quando vigoram! Tais decretos, eu, que não temo o poder de homem algum,
posso violar sem que por isso me venham punir os deuses! Que vou morrer, eu bem
sei; é inevitável; e morreria mesmo sem a tua proclamação." (p. 227/228)
Na opinião de
muitos esta passagem contém os mais belos versos de Sófocles. Antígone afronta,
destemerosa, o poder e a cólera do próprio rei. Ao desobedecer ao decreto e
ainda se alegrar com o ato, Antígone argumenta que os deuses exigem que se
apliquem os mesmos ritos a todos os mortais. E ao ouvir de Creonte que nunca um
inimigo lhe será querido, mesmo após a sua morte, profere a bela frase:
"Eu não nasci para partilhar de ódio, mas somente de amor!" (p. 233)
Em diversas
passagens, Creonte representa a tese do juspositivismo referente à identidade
entre Direito e mandatos, como no positivismo jurídico normativo e legalista:
os termos Lei e Direito são essencialmente equivalentes; em consequência,
a lei que se manifesta injusta constitui Direito formal e não carece de
validade. Veja-se este trecho: "Quem, por orgulho e arrogância, queira
violar a lei, e sobrepor-se aos que governam, nunca merecem meus encômios. O
homem que a cidade escolheu para chefe deve ser obedecido em tudo,quer seus
atos pareçam justos, quer não." (grifo nosso) (p. 243).
Quando surge em
cena Hémon, filho de Creonte e noivo de Antígone, a suplicar pela vida de sua
amada, trava-se o seguinte diálogo:
"Hémon –
Ouve: não há Estado algum que pertença a um único homem!
Creonte – Não pertence a cidade, então, a seu governante?
Hémon – Só num país inteiramente deserto terias o direito de governar sozinho!
Creonte – Bem se percebe que ele se tornou aliado dessa mulher!
Hémon – Só se tu te supões mulher, porque é pensando em ti que assim falo.
Creonte – Miserável! Por que te mostras em desacordo com teu pai?
Hémon – Por que te vejo renegar os ditames da Justiça!
Creonte – Por acaso eu a ofendo, sustentando minha autoridade?
Hémon – Mas tu não a sustentas calcando aos pés os preceitos que emanam dos deuses!"(p. 247/248).
Creonte – Não pertence a cidade, então, a seu governante?
Hémon – Só num país inteiramente deserto terias o direito de governar sozinho!
Creonte – Bem se percebe que ele se tornou aliado dessa mulher!
Hémon – Só se tu te supões mulher, porque é pensando em ti que assim falo.
Creonte – Miserável! Por que te mostras em desacordo com teu pai?
Hémon – Por que te vejo renegar os ditames da Justiça!
Creonte – Por acaso eu a ofendo, sustentando minha autoridade?
Hémon – Mas tu não a sustentas calcando aos pés os preceitos que emanam dos deuses!"(p. 247/248).
Até mesmo o
Corifeu revolta-se contra a lei do governante e não pode conter suas lágrimas
ao ver Antígone dirigindo-se ao túmulo. Reconhece a ação piedosa de prestar
culto aos mortos, mas quem exerce o poder não pode consentir em ser
desobedecido: "tu ofendeste a autoridade" (p. 255), diz ele.
Ao lermos essa
dramática peça teatral, que data de 2500 anos atrás, nos deparamos com uma
realidade aparentemente distante e cruel. Todavia, qual poder legiferante tem
mais relevância, o que foi imposto por uma autoridade divina ou uma humana?
Contextualizando aos nossos dias, um pai que assume uma responsabilidade
contratual, poderia se abster dela, mediante o abandono do seu emprego, para
cuidar de seu filho em estado terminal? Esse crime de Antígone reflete o “eterno”
conflito entre o direito natural e o direito positivado. Se houvesse uma
antinomia jurídica entre a justiça e a lei, qual preponderia?
Essas indagações
ainda perduram na modernidade, no qual mantém uma postura dúbia entre a
exacerbação do legalismo ou dos valores éticos. Uma grande hipocrisia seria
admitir que vivenciamos uma “exegese” pós-moderna, todavia também não vivemos
em um paraíso onde se relevam de modo sensato os valores. A sociedade fora
obrigada a transitar de um direito formal para um direito natural material, sendo
que essa materialidade expressa a ação social de uma classe, refletindo que a modernidade
capitalista não enseja uma racionalidade pura e cartesiana (somente os utópicos
iluministas tiveram esse posicionamento), mas caleidoscópica de diversos
valores.
O direito assume
uma racionalidade, reivindicada tanto pelas classes dominantes como subalternas.
Esse choque é inevitável, mas o ordenamento jurídico absorveu intensamente a
herança do “Welfare State”, não retomando o Estado Social de Direito, mas
concretizando anseios sociais de modo mais frequente. A lógica capitalista
puramente lógica dissolve-se rapidamente na sociedade; destaca-se, recentemente,
a ascensão das cotas raciais como meta real nos próximos anos, a meritocracia
tão reivindicada pelos mais abastados torna-se argumento falho. Um maior
igualitarismo estaria se instalando na sociedade, expandindo-se de modo
gradual? Possivelmente não, somente medidas amenizadoras das desigualdades
advindas de décadas, no qual serão fúteis se restringidas a esse aparente
avanço, pois a reformulação necessita extinguir os intensos pré-conceitos ainda
arraigados na sociedade atual. Novas Antígones devem emergir, não que seja adepto
do jusnaturalismo, justamente para incitar e propiciar uma dialética jurídica
permanente.
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