Total de visualizações de página (desde out/2009)

segunda-feira, 22 de outubro de 2012

Antígone pós-moderna


A tragédia Antígone discute o conflito entre o Direito Natural – o Direito considerado pelos antigos como sendo de origem divina e aceito ipso facto como costumeiro ou consuetudinário – e o Direito que toma forma jurídica nas leis estabelecidas pelo governante, tradicionalmente denominado Direito Positivo.
A narrativa de Sófocles segue a tradição mitológica. Após a desgraça de Édipo, seus dois filhos, Etéocles e Polinice disputam a posse do trono. Trava-se a luta, perecendo no mesmo dia os dois irmãos, ambos mortalmente feridos no duelo que travaram. Creonte, impondo-se então como tirano de Tebas, resolve prestar honras fúnebres a Etéocles, ao passo que proíbe, sob pena de morte, que se dê sepultura ao corpo de Polinice, para que fique exposto às aves carniceiras aquele que recorreu à aliança com os Argivos (povo inimigo) para conquistar o poder em sua terra.
Antígone, exemplo de amor fraternal, resolve expor-se ao perigo, e, contrariando o decreto do tirano, presta ao infeliz Polinice, seu irmão, o piedoso serviço das honras e dos rituais funerários, sob o risco de ser condenada à morte pela transgressão. Quando interrogada por Creonte, que se considera duplamente afrontado pelo desrespeito a uma lei em vigor e pela atitude criminosa vir de uma mulher, Antígone responde:
"Sim, porque não foi Júpiter que a promulgou; e a Justiça, a deusa que habita com as divindades subterrâneas, jamais estabeleceu tal decreto entre os humanos; nem eu creio que teu édito tenha força bastante para conferir a um mortal o poder de infringir as leis divinas, que nunca foram escritas, mas são irrevogáveis; não existem a partir de ontem, ou de hoje; são eternas sim! E ninguém sabe desde quando vigoram! Tais decretos, eu, que não temo o poder de homem algum, posso violar sem que por isso me venham punir os deuses! Que vou morrer, eu bem sei; é inevitável; e morreria mesmo sem a tua proclamação." (p. 227/228)
Na opinião de muitos esta passagem contém os mais belos versos de Sófocles. Antígone afronta, destemerosa, o poder e a cólera do próprio rei. Ao desobedecer ao decreto e ainda se alegrar com o ato, Antígone argumenta que os deuses exigem que se apliquem os mesmos ritos a todos os mortais. E ao ouvir de Creonte que nunca um inimigo lhe será querido, mesmo após a sua morte, profere a bela frase: "Eu não nasci para partilhar de ódio, mas somente de amor!" (p. 233)
Em diversas passagens, Creonte representa a tese do juspositivismo referente à identidade entre Direito e mandatos, como no positivismo jurídico normativo e legalista: os termos Lei e Direito são essencialmente equivalentes; em consequência, a lei que se manifesta injusta constitui Direito formal e não carece de validade. Veja-se este trecho: "Quem, por orgulho e arrogância, queira violar a lei, e sobrepor-se aos que governam, nunca merecem meus encômios. O homem que a cidade escolheu para chefe deve ser obedecido em tudo,quer seus atos pareçam justos, quer não." (grifo nosso) (p. 243).
Quando surge em cena Hémon, filho de Creonte e noivo de Antígone, a suplicar pela vida de sua amada, trava-se o seguinte diálogo:
"Hémon – Ouve: não há Estado algum que pertença a um único homem!
Creonte – Não pertence a cidade, então, a seu governante?
Hémon – Só num país inteiramente deserto terias o direito de governar sozinho!
Creonte – Bem se percebe que ele se tornou aliado dessa mulher!
Hémon – Só se tu te supões mulher, porque é pensando em ti que assim falo.
Creonte – Miserável! Por que te mostras em desacordo com teu pai?
Hémon – Por que te vejo renegar os ditames da Justiça!
Creonte – Por acaso eu a ofendo, sustentando minha autoridade?
Hémon – Mas tu não a sustentas calcando aos pés os preceitos que emanam dos deuses!"(p. 247/248).
Até mesmo o Corifeu revolta-se contra a lei do governante e não pode conter suas lágrimas ao ver Antígone dirigindo-se ao túmulo. Reconhece a ação piedosa de prestar culto aos mortos, mas quem exerce o poder não pode consentir em ser desobedecido: "tu ofendeste a autoridade" (p. 255), diz ele.


Ao lermos essa dramática peça teatral, que data de 2500 anos atrás, nos deparamos com uma realidade aparentemente distante e cruel. Todavia, qual poder legiferante tem mais relevância, o que foi imposto por uma autoridade divina ou uma humana? Contextualizando aos nossos dias, um pai que assume uma responsabilidade contratual, poderia se abster dela, mediante o abandono do seu emprego, para cuidar de seu filho em estado terminal? Esse crime de Antígone reflete o “eterno” conflito entre o direito natural e o direito positivado. Se houvesse uma antinomia jurídica entre a justiça e a lei, qual preponderia?
Essas indagações ainda perduram na modernidade, no qual mantém uma postura dúbia entre a exacerbação do legalismo ou dos valores éticos. Uma grande hipocrisia seria admitir que vivenciamos uma “exegese” pós-moderna, todavia também não vivemos em um paraíso onde se relevam de modo sensato os valores. A sociedade fora obrigada a transitar de um direito formal para um direito natural material, sendo que essa materialidade expressa a ação social de uma classe, refletindo que a modernidade capitalista não enseja uma racionalidade pura e cartesiana (somente os utópicos iluministas tiveram esse posicionamento), mas caleidoscópica de diversos valores.
O direito assume uma racionalidade, reivindicada tanto pelas classes dominantes como subalternas. Esse choque é inevitável, mas o ordenamento jurídico absorveu intensamente a herança do “Welfare State”, não retomando o Estado Social de Direito, mas concretizando anseios sociais de modo mais frequente. A lógica capitalista puramente lógica dissolve-se rapidamente na sociedade; destaca-se, recentemente, a ascensão das cotas raciais como meta real nos próximos anos, a meritocracia tão reivindicada pelos mais abastados torna-se argumento falho. Um maior igualitarismo estaria se instalando na sociedade, expandindo-se de modo gradual? Possivelmente não, somente medidas amenizadoras das desigualdades advindas de décadas, no qual serão fúteis se restringidas a esse aparente avanço, pois a reformulação necessita extinguir os intensos pré-conceitos ainda arraigados na sociedade atual. Novas Antígones devem emergir, não que seja adepto do jusnaturalismo, justamente para incitar e propiciar uma dialética jurídica permanente.


Nenhum comentário:

Postar um comentário