A
hipocrisia dos bons costumes
O Direito e seu império normativo, teoricamente, sempre serviram de forças inquestionáveis à preservação de certos valores sociais, da coesão coletiva. Os anseios , aspirações e a moral do conjunto estariam então representadas na norma , no sentido que a lei somente seria respeitada e recepcionada se tivesse embasamento social. A norma, assim, deveria zelar pela promoção e proteção da moral e dos bons costumes. No entanto, o que seriam os bons costumes? Conceito tão vago e abstrato quanto à definição da cientificidade do Direito, os bons costumes são relativos ao tempo e ao espaço. Se tomar banho uma vez por dia é habitual aos brasileiros, e, sempre fora aos indígenas, aos portugueses, todavia, era algo excêntrico. Se hoje vê-se uma nudez carnavalesca camuflada em tons variados de cores tropicais, antigamente ia-se à praia de terno e vestido em pleno verão carioca.Se o voto , ao menos no Brasil, é universal e secreto, ele já foi restritivo, censitário e machista.Se os casamentos inter-raciais são fatores comuns em qualquer grande cidade americana, o matrimônio entre brancos e negros já foi proibido por lei em todo o Deep South. O Direito, portanto, é agente ativo não na solidificação dos chamados bons costumes, mas na quebra dos mesmos para a formação de novos valores, novos paradigmas, novas consciências coletivas.
Agente ativo porque sem a indagação, a revolta, o questionamento, não há progresso social. Aquele que já foi subversivo com o tempo torna-se herói para os mesmos que o massacraram.Somente com a quebra de velhos valores que novos conceitos são elaborados, que ocorre progresso social.A solidariedade mecânica é sempre reacionária uma vez que teme a inovação e o desconhecido como afrontas à suposta estabilidade e previsibilidade da tradição e do costume.Solidariedade essa que taxava de terroristas os Panteras Negras e seu civil rights movement.Malcolm X , o herói da causa negra americana de hoje, já foi considerado terrorista pela CIA.E foi por meio de comportamentos de manada que se recusava a música e os gestos de Elvis Presley já que o músico era tido como pornográfico.Atualmente, repudia-se qualquer forma de preconceito étnico, no entanto, o antissemitismo já foi parte do bom costume da Rússia Imperial.Não participar dos pogroms retratados na obra de Dostoievsky era demonstração de recusa à tradição eslava.Assim, o bom costume de ontem é o absurdo de hoje e o Direito tem sua função na transição valorativa.O Direito, portanto, deve ser emancipador e não conservador.
Direito
emancipador porque nas décadas passadas viu-se movimentos de resistência armada
aderirem à causa política e a crença na normatividade e na força da mesma. IRA,
Hamas, Hezbollah, ainda que não integralmente, passaram a lutar por leis que
protejam suas causas e seus povos. Largam-se as armas e abraça-se às leis no
sentido que o Direito deixa de ser repressor em sua totalidade e passa à ferramenta
de luta das minorias oprimidas. Em um tempo de vazio ideológico dos partidos
tradicionais, aqueles que não se encontram, estruturalmente e politicamente, organizados
como os movimentos acima, sucumbem à descrença generalizada no processo
legislativo e na própria coesão de consciências coletivas devido à diversidade,
a liquidez e a heterogeneidade pós-modernas.
O
Direito, consequentemente, assume o poder de decisão através da crescente
atuação jurisprudicional como força legislativa. Ele deixa de ser meramente
reprodutor de velhos preconceitos, vícios e tradições datadas e passa a ser
energia renovadora.Se os bons costumes são flexíveis e sujeitos a modificações
temporais e espaciais, o Direito também
deve ser.Assim, se o falso moralismo e hipocrisia ainda sustentam a defesa dos
chamados bons costumes na sociedade brasileira, somente uma frase de Nelson
Rodrigues para ilustrar as contradições barrocas intrínsecas à brasilidade: “Se
cada um soubesse o que o outro faz dentro de quatro paredes,ninguém se cumprimentava”.
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