O Agravo de Instrumento nº 70003434388
da Décima Nona Câmara Cível de Passo Fundo do Tribunal de Justiça do Estado do
Rio Grande do Sul, interposto por Plinio Formighieri e Valeria Dreyer
Formighieri, foi julgado no ano de 2001 pelos desembargadores Mário José Gomes
Pereira, revisor do caso, e Luís Augusto Coelho Braga, sob a relatoria do
desembargador Carlos Rafael dos Santos Junior.
Esse agravo
trata da revisão de decisão interlocutória que negou provimento de liminar para
reintegração de posse de uma área rural pertencente aos agravantes, avaliada
como improdutiva, invadida por integrantes do Movimento dos Trabalhadores
Sem-Terra (MST).
A decisão
foi de negação do provimento, com dois votos contrários ao recurso, advindos
dos desembargadores relator e revisor, e um favorável, do desembargador Luís
Augusto Coelho Braga. Os argumentos giraram em torno do embate entre a função
social da propriedade, o devido processo legal e a intervenção da União nesse
tipo de processo.
As ideias
apresentadas pela socióloga Sara Araújo em seu artigo “O primado do direito e
as exclusões abissais: reconstruir velhos conceitos, desafiar o cânone”, que
correlaciona as Epistemologias do Sul com a sociologia do direito, apresentando
uma visão do direito moderno eurocêntrico como “um instrumento poderoso de
reprodução do colonialismo” que promove exclusões abissais, podem ser
enxergadas dentro desse julgado.
A autora
irá discorrer sobre a primazia do direito como mecanismo de expansão do projeto
capitalista e colonial, argumentando que “a colonialidade jurídica mimetiza a
colonialidade do saber”.
Em uma
rápida análise histórica, retomando o conceito de colonialismo, é possível
relembrarmos que o norte sempre foi considerado superior, e isso se deve ao
fato de que, muitos países do hemisfério sul do globo, foram por muito tempo,
colônias de exploração de países europeus como Inglaterra, Espanha e Portugal.
Esse
domínio do norte, que teve seu fim a poucos séculos atrás, deu ao sul o legado
de inferior, primitivo, e isso possui reflexos em todas as áreas da sociedade
contemporânea, já que o sistema capitalista possui como um de seus pilares
originários o colonialismo.
Ao
relacionarmos isso ao julgado supracitado, é possível enxergarmos diversas
consequências do domínio das Epistemologias do Norte. Por exemplo, a
“monocultura da produtividade”, conceito debatido pela socióloga, que consiste
na questão da desvalorização e inviabilização da produção do “outro”, ou seja,
do sul, e isso explica a visão da sociedade quanto ao MST, que é criminalizado
por muitos, pois a agricultura realizada por eles não possui por objetivo o fim
valorizado pelo sistema, que seria a exportação, a lógica da escala global;
essa deturpação da visão também permite o desperdício de experiências, como conhecimento
em agroecologia.
Quando se
segue um modelo jurídico que harmoniza com o sistema, ocorre que se “respeita
mais os mercados do que as pessoas, atropela ordenamentos jurídicos que regem
outras culturas e outras organizações políticas, e cria a sociedade civil
incivil” (p.111).
Além disso,
um dos argumentos do desembargador Coelho Braga acerca da ilegitimidade do
movimento perante o Estado e suas críticas quanto à busca pela reforma agrária,
cria-se o efeito de “produção da inexistência”, tratado pela socióloga como um
conceito que torna o “outro” invisível, ou seja, a atuação do MST para que haja
mudança social, não deve produzir efeito já que não segue o devido processo
legal.
Ademais, a
tentativa dos dois primeiros desembargadores de realizar uma interpretação de
forma construtiva, e não apenas normativista, como segue a velha exegese, e a
utilização do princípio da ponderação, demonstra uma adaptação do direito à
realidade, considerando o contexto, a conjuntura e a cultura, ultrapassando o
limite em que predomina a razão metonímica.
A partir
disso, é possível concluir que para a construção de uma Epistemologia do Sul, é
necessário, que ocorra a emancipação da monocultura imposta pelo Norte, e isso
poderá ocorrer através do instrumento de poder que rege a sociedade, ou seja, o
Direito, que deve ter como base a realidade social para a qual ela serve.
Outrossim, a
defesa do desembargador Coelho Braga demonstra uma predisposição em manter o
sistema da forma que ele é, com a ideia de um Direito normativo; e diferindo
disso, os desembargadores relator e revisor demonstram que com a interpretação
sendo voltada para a realidade em que vivemos, nos termos de Sara Araújo, há a
chance de construirmos uma base para uma Epistemologia do Sul que possa se impor.
A visão da sociedade deve também
voltar-se para ela mesma, enxergando aquilo que difere do sistema como algo que
pode agregar em sua própria cultura. Destarte, o pluralismo jurídico e o avanço
sobre a linha abissal poderão concretizar-se.
Daiana Li Zhao - Direito Matutino - 1º ano
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