Total de visualizações de página (desde out/2009)

domingo, 1 de setembro de 2019

O sistema abissal


O Agravo de Instrumento nº 70003434388 da Décima Nona Câmara Cível de Passo Fundo do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, interposto por Plinio Formighieri e Valeria Dreyer Formighieri, foi julgado no ano de 2001 pelos desembargadores Mário José Gomes Pereira, revisor do caso, e Luís Augusto Coelho Braga, sob a relatoria do desembargador Carlos Rafael dos Santos Junior.
            Esse agravo trata da revisão de decisão interlocutória que negou provimento de liminar para reintegração de posse de uma área rural pertencente aos agravantes, avaliada como improdutiva, invadida por integrantes do Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra (MST).
            A decisão foi de negação do provimento, com dois votos contrários ao recurso, advindos dos desembargadores relator e revisor, e um favorável, do desembargador Luís Augusto Coelho Braga. Os argumentos giraram em torno do embate entre a função social da propriedade, o devido processo legal e a intervenção da União nesse tipo de processo.
            As ideias apresentadas pela socióloga Sara Araújo em seu artigo “O primado do direito e as exclusões abissais: reconstruir velhos conceitos, desafiar o cânone”, que correlaciona as Epistemologias do Sul com a sociologia do direito, apresentando uma visão do direito moderno eurocêntrico como “um instrumento poderoso de reprodução do colonialismo” que promove exclusões abissais, podem ser enxergadas dentro desse julgado.
            A autora irá discorrer sobre a primazia do direito como mecanismo de expansão do projeto capitalista e colonial, argumentando que “a colonialidade jurídica mimetiza a colonialidade do saber”.
            Em uma rápida análise histórica, retomando o conceito de colonialismo, é possível relembrarmos que o norte sempre foi considerado superior, e isso se deve ao fato de que, muitos países do hemisfério sul do globo, foram por muito tempo, colônias de exploração de países europeus como Inglaterra, Espanha e Portugal.
            Esse domínio do norte, que teve seu fim a poucos séculos atrás, deu ao sul o legado de inferior, primitivo, e isso possui reflexos em todas as áreas da sociedade contemporânea, já que o sistema capitalista possui como um de seus pilares originários o colonialismo.
            Ao relacionarmos isso ao julgado supracitado, é possível enxergarmos diversas consequências do domínio das Epistemologias do Norte. Por exemplo, a “monocultura da produtividade”, conceito debatido pela socióloga, que consiste na questão da desvalorização e inviabilização da produção do “outro”, ou seja, do sul, e isso explica a visão da sociedade quanto ao MST, que é criminalizado por muitos, pois a agricultura realizada por eles não possui por objetivo o fim valorizado pelo sistema, que seria a exportação, a lógica da escala global; essa deturpação da visão também permite o desperdício de experiências, como conhecimento em agroecologia.
            Quando se segue um modelo jurídico que harmoniza com o sistema, ocorre que se “respeita mais os mercados do que as pessoas, atropela ordenamentos jurídicos que regem outras culturas e outras organizações políticas, e cria a sociedade civil incivil” (p.111).
            Além disso, um dos argumentos do desembargador Coelho Braga acerca da ilegitimidade do movimento perante o Estado e suas críticas quanto à busca pela reforma agrária, cria-se o efeito de “produção da inexistência”, tratado pela socióloga como um conceito que torna o “outro” invisível, ou seja, a atuação do MST para que haja mudança social, não deve produzir efeito já que não segue o devido processo legal.
            Ademais, a tentativa dos dois primeiros desembargadores de realizar uma interpretação de forma construtiva, e não apenas normativista, como segue a velha exegese, e a utilização do princípio da ponderação, demonstra uma adaptação do direito à realidade, considerando o contexto, a conjuntura e a cultura, ultrapassando o limite em que predomina a razão metonímica.
            A partir disso, é possível concluir que para a construção de uma Epistemologia do Sul, é necessário, que ocorra a emancipação da monocultura imposta pelo Norte, e isso poderá ocorrer através do instrumento de poder que rege a sociedade, ou seja, o Direito, que deve ter como base a realidade social para a qual ela serve.
            Outrossim, a defesa do desembargador Coelho Braga demonstra uma predisposição em manter o sistema da forma que ele é, com a ideia de um Direito normativo; e diferindo disso, os desembargadores relator e revisor demonstram que com a interpretação sendo voltada para a realidade em que vivemos, nos termos de Sara Araújo, há a chance de construirmos uma base para uma Epistemologia do Sul que possa se impor.
A visão da sociedade deve também voltar-se para ela mesma, enxergando aquilo que difere do sistema como algo que pode agregar em sua própria cultura. Destarte, o pluralismo jurídico e o avanço sobre a linha abissal poderão concretizar-se. 


Daiana Li Zhao - Direito Matutino - 1º ano

Nenhum comentário:

Postar um comentário