Em
seu texto “O primado do direito e as exclusões abissais: reconstruir velhos
conceitos, desafiar o cânone”, Sara Araújo trata sobre a existência de uma
natureza etnocêntrica nos discursos sobre direitos. O direito para a autora é
um duplo da ciência, ou seja, ele também se espelha nas cinco monoculturas de
razão metonímica e classifica as formulações jurídicas não modernas como
irrelevantes, locais, improdutivas, inferiores e primitivas. Sara defende um
argumento de que o um pluralismo jurídico pode ser usado como instrumento para
a descolonização, se esse for reformulado enquanto ecologia jurídica. Através
dessas importantes constatações tem-se um exemplo no julgado do TJRS sobre
agravo de instrumento relativo a Fazenda primavera, onde não há uma ecologia
jurídica, no entanto, o tribunal soube perceber e reconhecer um direito
exercido por um grupo minoritário, em conformidade com princípios
constitucionais.
No
julgado o que se discute é um agravo de instrumento, os agravantes questionam a
decisão judicial que indeferiu a liminar nos autos da reintegração de posse,
afirmando que não seria o caso de considerar a função social da terra, uma vez
que eles apresentaram os requisitos previstos no CPC. A decisão tomada pelo
tribunal foi de negação do agravo, por dois votos contrários que se basearam
principalmente na função social da terra, prevista no artigo 5º inciso XXIII,
como condição para a posse da terra. Em um dos votos contrários, o do
desembargador Carlos Rafael dos Santos Júnior, ele defende uma interpretação
teleológica da lei, ou seja, é preciso descobrir e revelar o direito para a
situação dada. O outro voto a favor, do desembargador Mário José gomes Pereira,
argumenta que se vive uma fase de predomínio social sobre o individual, que
impõe limitações ao direito de propriedade que são ditadas pelo interesse
público e princípios de justiça e do bem comum. Esses votos reconhecem a
legalidade das ações dos membros do movimento MST, que têm fundamento em
princípios constitucionais, fazendo assim uma ponte entre o direito
marginalizado e o direito moderno, apesar de as regras ainda serem ditadas por
esse último levando em consideração as ideias de Sara Araújo.
No
voto contrário, o do desembargador Luís Augusto Coelho Braga, é defendida uma
ideia que prioriza a epistemologia do norte de forma absoluta, questiona ele o
modo de agir do MST, que segundo ele não tem previsão pelo código de processo
civil, portanto, deve ter nulidade absoluta. O desembargador exalta o pensamento de
Rousseau e defende suas ideias como princípios universais que devem ser
assegurados no Estado de direito. Esse ponto de vista, sob a perspectiva de
Sara Araújo é uma imposição de cima para baixo das epistemologias do Norte,
negando qualquer possibilidade de diálogo com povos do sul.
Conclui-se
dessa forma que as epistemologias do Norte ainda têm uma forte influência mesmo
em um país do Sul como o Brasil, sendo que essa decisão judicial foi tomada
utilizando-se as regras ditadas pelo direito moderno. Apesar disso também se
observa nesse julgado que os desembargadores em sua maioria não optaram pela
simples exclusão do MST, como um grupo que age em desacordo com o Código de
Processo Civil, mas reconheceram suas ações por se alinharem a princípios
constitucionais. Há nesse julgado a construção de uma ponte, que permite um
diálogo entre o direito dessas pessoas marginalizadas e o direito moderno, sendo
este capaz de reconhecer aqueles dentro de seus próprios parâmetros.
Gustavo Dias Polini - Direito Noturno
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