A função social da
propriedade, reconhecida pela Constituição Cidadã (promulgada em 1988), foi
amplamente debatida durante o julgamento de um pedido de reintegração de posse
levado até o TJRS no ano de 2001. A ação, classificada como um agravo de instrumento,
tinha o objetivo de revogar a decisão do juiz Dr. Luiz Christiano Enger que
havia negado a reintegração em primeira instância e considerado legítima a
ocupação da propriedade pelos integrantes do MST. A partir dos votos dos
desembargadores, é possível promover uma análise sociológica do julgado que
transcenda o universo puramente jurídico e eleve a discussão a um novo patamar.
Os desembargadores Carlos Rafael (relator) e Mário José
Gomes, ao votarem pelo não provimento do recurso, mostraram, de certa forma,
que o Direito pode sim ser emancipatório, pois reconheceram a dignidade dessas
pessoas despossuídas e marginais, classificas por Boaventura de Sousa Santos como
pertencentes à sociedade Civil-Incivil. O relator do processo destacou em seu
voto que os autores do recurso não haviam comprovado o grau de eficiência e
exploração da área, nos termos previstos na lei n°8.629/93, prova legal e
documental que autoriza a imediata reintegração. Ademais, citou o conceito da
“interpretação sistemática do Direito” de autoria do professor Alexandre
Pasqualini, concepção esta que defende a ampliação da ideia de sistema jurídico
e uma hierarquização axiológica dos direitos. Nesse sentido, o desembargador
rompe com a “Razão Metonímica”, responsável por exportar para o Brasil um
Direito Civil patrimonialista europeu e traz a necessidade de se reconhecer a
importância dos direitos sociais, além de aplicar o conceito de “Ecologia de
justiças” defendido pela Sara Araújo em seu voto. Cumpre salientar que o juiz
Mário José destacou que tanto o Código Civil como o Código de processo civil
não tinham recebido qualquer alteração decorrente do princípio da função social
da propriedade adotado pela Constituição Federal de 1988, demostrando
claramente a deficiência de tais legislações.
Por outro lado, o desembargador Luiz Augusto, ao
justificar seu voto pelo provimento do recurso, vai declarar que a propriedade em
questão realiza sua função social de acordo com os preceitos constitucionais e
os integrantes do MST desrespeitaram a lei e o devido processo legal, pois não
se submeteram à atuação do Incra, órgão
legítimo para realizar a desapropriação de terras e a consequente reforma
agrária . Argumentou que não permitir a reintegração de posse para áreas
comprovadamente produtivas geraria uma situação de insegurança jurídica, além
de trazer uma citação do constitucionalista José Afonso da Silva que defende a
ideia de que não é papel do Judiciário ser ativista e promover reformas
sociais.
A argumentação do desembargador Luiz Augusto pode ser
rebatida pela fala do relator Carlos Rafael ao afirmar o princípio do “non
liquet” do nosso ordenamento jurídico. Apesar de não ser função do Poder Judiciário
promover um ativismo social, este não pode se abster da produção de uma decisão
quando provocado. De acordo com o relator: “o juiz não pode deixar de decidir
pela falta de norma infraconstitucional de cunho procedimental”. Por fim, é
importante destacar como a atividade judiciária é extremamente complexa e
litigiosa, pois na época de produção desse julgado o código civil em vigor era
o de 1916 e o de Processo Civil, de 1973, portanto anteriores à Constituição de
1988. Apesar desse conflito entre as normas existentes, o colegiado foi
obrigado a produzir uma decisão, inerente e necessária à função do Poder
Judiciário. Trazendo o sociólogo Pierre Bourdieu para a discussão, os juízes
promoveram uma “Historicização da Norma”, pois, nas palavras do francês,
adaptaram “as fontes a circunstâncias novas, descobrindo nelas possibilidades
inéditas, deixando de lado o que está ultrapassado ou que é caduco”.
Nicolas Candido Chiarelli do
Nascimento
Período: matutino
Turma: XXXVI
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