O Supremo Tribunal Federal,
durante o julgamento da ADI 4277 e da ADPF 132, reconheceu, por unanimidade, a
união estável para casais homossexuais. Tal decisão representou um considerável
avanço para a implementação da isonomia entre casais com diferentes orientações
sexuais, além de significar uma ação importante no sentido de evitar a
discriminação odiosa e salientar a dignidade da pessoa humana. Essa atuação do
judiciário brasileiro possibilita uma análise dicotômica entre o que se
considera como funções legítimas de um
tribunal de instância superior, utilizando, principalmente, os autores: Antoine
Garapon e Ingeborg Maus.
A ministra Carmém Lúcia argumentou que o parágrafo 3°. do
artigo 226 da C.F apresenta um rol exemplificativo e não taxativo do que se
considera como família, destacando também que a dignidade da pessoa humana
pressupõe a sua liberdade. A votação favorável da ministra, que culminou com o seu
posicionamento, foi seguido pela totalidade da corte e demonstra como no mundo
contemporâneo, segundo Garapon, a lei geral é incapaz de prever as dificuldades
que podem surgir. Por essa razão, o sistema jurídico acaba delegando ao juiz a
função de “conselheiro prudente” e “ministro da equidade”. Já no capítulo “A magistratura do Sujeito”,
Garapon irá explicar por que o individualismo e a liberdade, proporcionados
pela Democracia, vão fomentar uma maior intervenção do judiciário na vida
particular de cada indivíduo (fato evidenciado pela ADI 4277). Nas palavras do
autor: “O preço do individualismo é uma crescente tutelarização do sujeito”,
isto é, uma judicialização das relações sociais.
Uma questão que pode ser colocada, a partir da análise do
julgado, é a seguinte: até que ponto o aspecto axiológico das decisões traz
insegurança hermenêutica? Tanto os ministros Lewandowski como Gilmar Mendes
reconheceram a literalidade do artigo 226, afirmando que a Constituição Federal
reconhece a união estável para pessoas de sexo distinto, intenção prevista pela
Assembleia Constituinte e, portanto, a união estável de pessoas do mesmo sexo
seria, segundo Lewandowski, um quarto tipo de família não previsto na Carta
Magna de 1988. A atitude do judiciário de ir além do texto positivado pode
significar uma ultrapassagem de seus limites estabelecidos pelo Mecanismo de
Freios e Contrapesos, previsto no artigo 2°. da Constituição. Nesse
entendimento, vale trazer uma frase do filósofo Confúcio para a discussão: “Leve
um punhado de terra todos os dias e logo terás uma montanha”. Essa metáfora se
aplica no sentido de que se passarmos a legitimar esses tipos de atitude do
judiciário, logo elas poderão servir de base para a instalação de um regime de
exceção. Esta hipótese, longe de ser uma reductio
ad absurdum, é considerada por Maus em seu artigo. De acordo com a autora: “como
demonstrado de modo eloquente pelo regime nazista, o terror político aberto
encontra no direito formal um obstáculo” e “o juiz-rei do povo de Adolf Hitler
deve libertar-se da escravidão da literalidade do direito positivado”. A
produção de decisões além das normas constitucionais é baseada em uma moral
superior (conceito abstrato) e há um grande problema em tal situação, segundo
Ingeborg Maus, pois quando a justiça ascende a mais alta instância moral da
sociedade, deixa de estar sujeita a qualquer mecanismo de controle social, ao
qual normalmente se deve subordinar toda instituição do Estado em uma forma de
organização político-democrática. Nessa linha de raciocínio, cabe destacar que
nenhum magistrado é o hipotético Juiz-Hércules teorizado por Dworkin, um ser
abstrato com plena capacidade de integrar de forma perfeita regras, princípios
e motivações pré-jurídicas. Os juízes reais são suscetíveis a interpretações
mais subjetivas do que o desejado, o que pode trazer a já citada questão da
insegurança hermenêutica.
Sem dúvida o reconhecimento da união estável homoafetiva
trouxe melhorias crucias para a nossa sociedade plural. Entretanto, como já
advertido por Maus, é necessário sempre olhar com desconfiança e senso crítico para
os posicionamentos da Suprema Corte que de algum modo excedam as suas funções,
com o intuito de justamente evitar uma possível fragilização do regime
democrático vigente.
Nicolas Candido Chiarelli do
Nascimento
Período Matutino
Turma XXXVI
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