A Justiça e o Sujeito
Antoine
Garapon é um jurista francês referência nos estudos de Sociologia do Direito.
Garapon analisa a reorganização social que os Estados democráticos vêm sofrendo
e como isso influencia nas demandas do Judiciário. Para o autor, vivemos tempos
em que cada sujeito reivindica para si algum tipo de tutela pública que não se
concretiza a partir de políticas públicas estatais, o que Garapon qualifica
como a magistratura do sujeito. O jurista enuncia que “o Código Civil é um
código burguês que só reconhece os verdadeiros direitos para um número limitado
de sujeitos”. Com isso, percebemos que o mundo normativo previstos pelos Códigos
positivados é incapaz de prever todas as situações socias possíveis, o que o
autor confirma no trecho: “a lei geral é incapaz de compreender a diversidade
de valores. As dificuldades que podem surgir são numerosas e imprevisíveis que
o legislador não pode antecipá-las”. Segundo Garapon, quanto menos situações previstas pelo direito, mais a
sociedade é sujeita a se tornar jurídica. Ou seja, cada vez mais o cidadão
passar a exigir do Judiciário, soluções que sanem seus litígios sociais. E, esse
fenômeno mundial de busca de resolução de conflitos de teor político, social e
moral pelo Poder Judiciário, ao invés de serem solucionadas pelo poder
competente (Executivo ou o Legislativo), se chama judicialização.
Quanto a questão da judicialização, a socióloga
alemã Ingeborg Maus prevê que são os estímulos de mudanças sociais (almejados
por diferentes movimentos de minorias sociais) que levam o judiciário a
expandir o seu próprio campo de ação em favor dos indivíduos. Para Maus, povo
confia mais no senso de justiça de um juiz do que na presteza do Legislativo,
já que segundo a autora: “a expectativa de que a Justiça possa funcionar como
instância moral não se manifesta somente em pressuposições de cláusulas legais,
mas também na permanência de uma certa confiança popular”. Assim, a autora
estabelece que ao Judiciário é confiado pela sociedade a tarefa central de
sintetizar a heterogeneidade social de acordo com os preceitos fundamentais de
cada cidadão e guiado pela justiça.
Um exemplo de caso de judicialização no âmbito
jurídico brasileiro foi a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4277 e a
Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 132 que reconheceram
a união estável para casais do mesmo sexo. Os ministros do Supremo Tribunal
Federal (STF), em decisão unânime, excluíram qualquer significado do artigo
1.723 do Código Civil e do artigo 226 parágrafo 3º da Constituição Federal que
impeça o reconhecimento da união entre pessoas do mesmo sexo como entidade
familiar. Baseados principalmente nos preceitos da Constituição Federal que
vedam qualquer discriminação em virtude de origem, sexo, raça, cor, idade e
quaisquer outras formas de discriminação (artigo 3º, inciso IV) e os princípios
de igualde (artigo 5º) e dignidade da pessoa humana (artigo 1º, inciso III) ,
sendo assim, ninguém pode ser discriminado em virtude de sua orientação sexual.
Apesar da Constituição Federal de 1988 prever
agentes estruturais no Executivo e Legislativo para alçar mudanças, muitos
fatores contribuem para a sociedade enxergar no Judiciário o lugar legítimo
para se discutir questões morais e sociais que na verdade deveriam ser debatidas
no âmbito político (Legislativo e Executivo). Dentre esses fatores, se
encontram o desprestígio dos agentes públicos do legislativo, devido aos inúmeros
casos de envolvimento em corrupção, e a lentidão das discussões sobre os Projetos
de Lei ou os Projetos de Emenda constitucional no Congresso Nacional. Como o
Ministro Gilmar Mendes ressaltou em seu voto sobre a matéria da união afetiva: “apesar
de o Poder Legislativo debruçar-se sobre o tema há mais de 15 anos, até hoje
não conseguiu chegar a consenso básico para a aprovação de qualquer
regulamentação”.
O Ministro Joaquim Barbosa discorre em se voto sobre
o fato da judicialização do caso: “gostaria de ressaltar que estamos diante de
uma situação que demonstra claramente o descompasso entre o mundo dos fatos e o
universo do Direito. Visivelmente nos confrontamos aqui com uma situação em que
o Direito não foi capaz de acompanhar as profundas e estruturais mudanças
sociais, não apenas entre nós brasileiros, mas em escala global. É precisamente
nessas situações que se agiganta o papel das Cortes constitucionais.” Desse
modo, percebemos que a judicialização ocorre justamente quando certas questões
que tradicionalmente cabiam aos poderes Legislativo e Executivo são deslocadas para
o âmbito do Judiciário. Ou seja, na inexistência ou na inefetivação de um
direito fundamental, o Judiciário age para concretizá-lo. Todavia, como enuncia
Maus: “quando a Justiça ascende ela própria à condição de mais alta instância
moral da sociedade, passa a escapar de qualquer mecanismo de controle social —
controle ao qual normalmente se deve subordinar toda instituição do Estado em
uma forma de organização política democrática”. Sem retirar o mérito do julgado
analisado, ao mesmo tempo que pode ser uma ferramenta útil, o excesso de
judicialização pode ser danoso por escapar aos controles próprios de uma
democracia. Afinal, quem controla o Judiciário? Deste modo, o segredo para
controlar os índices da judicialização é apostarmos no bom funcionamento do
sistema político (Legislativo e Executivo) através de uma reforma política e
maior conscientização do eleitorado brasileiro sobre suas responsabilidades
para com a sociedade como um todo.
Referências Bibliográficas:
GARAPON, Antoine. O juiz e a democracia: o
guardião das promessas. Rio de Janeiro: Revan, 1999. [Cap. VI – A
magistratura do sujeito, p. 139-153]
MAUS, Ingeborg. Judiciário como superego da
sociedade: o papel da atividade jurisprudencial na "sociedade órfã".
Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, n. 58, p. 183-202, nov. 2002.
Raquel Rinaldi Russo – 1º ano
Direito Matutino
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