Segundo Antoine Garapon, ‘’a história da justiça é
aquela da profanação progressiva de toda autoridade tradicional’’. Ou seja, a
justiça é construída a partir de um histórico de lutas feitas por grupos
minoritários para que conquistassem, também, os espaços já ocupados pelos grupos
tradicionais.
No Brasil, o movimento LGBT existe há mais de 40 anos.
É importante lembrar que, no contexto da ditadura militar, o Estado vigiava
constantemente os aspectos da vida íntima das pessoas. O fato de ser
homoafetivo tornava essas pessoas como não-dignas de respeitável humanidade,
além de sofrerem perseguições, prisões arbitrárias, torturas e extorsões. A
‘’apologia ao homossexualismo’’ era vetada e impedida de circular, sob o
argumento de que violavam ‘’a moral e os bons costumes’’. Até mesmo personagens
homens afeminados ou mulheres masculinizadas eram passíveis de serem cortadas
da mídia.
Fábio Feldmann, ex-deputado e participante da
Assembleia Constituinte de 1988, contou em entrevista ao programa ‘’Panorama’’,
na TV Cultura, que colocou em pauta – na Constituinte – a proibição
da discriminação por orientação sexual, e foi derrotado.
Isso mostra que (assim como coloca Garapon sobre os
fatos apresentados pelos demógrafos) de fato, houve uma ruptura em um dado
momento – ruptura esta que, em maior parte, foi conquistada a partir de lutas
pela desconstrução de modelos tradicionalistas – e a novidade é a quase indiferença
dos demais em relação às escolhas individuais. Não há mais um único modelo
naturalmente admitido e, consequentemente, também não existe algum que não possa
ser admitido. As diversidades são mais aceitas e respeitadas do que
anteriormente – o que não significa completa aceitação social. Há, portanto,
uma quebra de vínculo e uma libertação em relação aos chamados ‘’magistrados
naturais’’. O poder de impor esta ou aquela conduta não recai mais a eles.
Hoje, o direito é quem exerce o papel de orientar as relações sociais.
O reconhecimento da união estável para homoafetivos –
tratado na ADI 4.277/DF – é uma questão urgente para esses cidadãos que não
tinham seus direitos resguardados simplesmente por não possuírem um padrão de
relacionamento heteroafetivo. Assim como argumenta o ministro Ayres Britto, o papel
do direito é assegurar o desenvolvimento de seus cidadãos, não interferindo em
seus projetos e preferências individuais que não configurem ilicitude, e a
homoafetividade não é ilícita. Muito pelo contrário, ela é assegurada a partir
de princípios como o da igualdade, em que ‘’o legislador e o intérprete não
podem conferir tratamento diferenciado a pessoas e a situações substancialmente
iguais, sendo-lhes constitucionalmente vedadas quaisquer diferenciações
baseadas na origem, no gênero e na cor da pele (inciso IV do art 3º)’’; e o da
liberdade, no qual ‘’a autonomia privada em sua dimensão existencial
manifesta-se na possibilidade de orientar-se sexualmente e em todos os
desdobramentos decorrentes de tal orientação’’.
Ingeborg Maus entende que o processo de judicialização
(que leva a sociedade a depender dos tribunais para validar ou não uma decisão como
esta) é uma espécie de infantilização da sociedade, pois o judiciário
condicionaria os valores daquele meio social. Entretanto, como já foi aqui apresentado,
a demanda por direitos da população LGBT brasileira ocorre há mais de 40 anos,
e o legislativo aparenta permanecer adormecido para discutir acerca do assunto;
então, a mobilização levada ao STF e a decorrente decisão aparecem como uma
efetivação dos direitos para essa população.
Anielly Schiavinato Leite – 1º noturno
*referência dos dados acerca da população LGBT no
período da ditadura militar brasileira: https://revistacult.uol.com.br/home/dossie-o-movimento-lgbt-brasileiro-40-anos-de-luta/
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