Dentro de um mesmo artigo da Constituição
Federal Brasileira existe a defesa tanto do direito da propriedade privada quanto
da necessidade da propriedade privada cumprir com sua função social:
Art.
5°. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,
garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residente no País a
inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à
propriedade, nos seguintes termos:
XXII
– é garantido o direito de propriedade;
XXIII – a propriedade atenderá a sua função social;
Então
como ponderar esses direitos? Segundo Boaventura, numa perspectiva do direito
configurativo, aplicado ao direito dos 1% (direito como um instrumento de
dominação que atua principalmente através da retórica), o art. 5º deveria
decidir à favor da propriedade privada, de forma a predominar o paradigma
oitocentista do CC/16 em seu aspecto patrimonialista, deixando impune os donos
da Fazenda Primavera (mesmo que não cumprindo com a função social, os poderosos
acabam por ter impunidade por suas ilegalidades e/ou conseguem alterar
mecanismos jurídicos para servirem aos seus interesses privados) e gerar uma
punição severa ao MST pela invasão da propriedade. Esse cenário já ocorreu com
o julgamento do “Pinheirinho” no qual a propriedade privada prevaleceu.
Entretanto,
como assegurou Barroso, o STF possui um caráter representativo, sendo permeável
ao sentimento social e a vontade pública, e contra-hegemônico, sobrevalecendo sua
vontade sobre a vontade do legislativo que criou uma lei (criada pelo direito
dos dominantes). Devido a essas características, a judicialização empregada no
julgado da Fazenda Primavera, possibilitou a predominância do coletivo sobre o
individual, levando em consideração um conjunto de normas da Constituição
(arts. 5º, incs. XXIV a XXX, 170, incs. II e III, 176, 177, 178, 182, 183, 184,
185, 186, 191 e 222) que traçam limites e interferem na propriedade para que
essa possa atender à sua função social, levando em conta mais do que um direito
individual e sim um dever social. A decisão do juiz passou a ter um caráter de
direito prefigurativo, que segundo Boaventura, “expressa, na prática, a antecipação
de uma sociedade diferente, baseada num conjunto de relações de poder
totalmente distinta”. (1) Em outras palavras, o direito dos 99% representada
pelo MST está em iminência de se fixar em direito reconfigurativo, que para esse
movimento significaria a luta “por uma sociedade mais justa e fraterna”, a
solução dos “graves problemas estruturais do nosso país, como a desigualdade
social e de renda, a discriminação de etnia e gênero, a concentração da
comunicação, a exploração do trabalhador urbano, etc” e a “realização da
Reforma Agrária, democratizando o acesso à terra e produzindo alimentos”. (2)
Para
que esse direito reconfigurativo acontecesse, o MST agiu sob a combinação das
ações jurídicas e ações políticas. Nas ações políticas ocorreu a realização de
ocupações coletivas bem organizadas e estruturadas, marchas, jejuns/greves de
fome, vigílias e manifestações públicas, de forma a tanto pressionar os poderes
políticos quanto promover a sensibilização da sociedade acerca da reforma agrária
(um dos principais objetivos do MST); nas ações judiciais, ocorreu o apelo ao
STF tanto pedindo “suspensão da injunção” (visando a permanência das famílias
nas áreas ocupadas) – como foi o caso da Fazenda Primavera, alegando a
incapacidade do INCRA fiscalizar se a propriedade cumpria sua função social –
assim como a utilização da prevalência dos direitos fundamentais humanos (como
dignidade da pessoa humana) sobre o direito patrimonial individual atrelado à
função social da propriedade e a comprovação do exercício de posse por parte do
proprietário; já nas ações não-judiciais, ocorreram investimentos na formação
técnica dos advogados populares para a defesa da causa do MST e parcerias com
universidades como as NAJUPs e SAJUs, visando proporcionando uma aproximação
entre o MST e os operadores do direito, além de aumentar a possibilidade de
emprego da retórica (principal instrumento utilizado pelo direito do 1%) e de forma a influenciar na formação de novos
profissionais do direito.
Concluí-se
que a partir dessa ponte entre ações políticas e ações jurídicas, o MST estaria,
segundo Bourdieu, promovendo a efetivação e legitimação da luta social por meio
da estrutura balizante do direito. Para Boaventura, o MST realizou uma
mobilização política proativa, por utilizar os tribunais para reivindicações,
por pressionar a burocracia estatal e por mobilizar a alterações legislativas
visando os interesses desse grupo (que
no caso se tornou alvo do fascismo social criado pelo direito do 1%). Através
dessa mobilização e da utilização de um constitucionalismo transformador, o MST
pode utilizar o direito como emancipatório, reconfiguranto o direito vigente
pelos dominantes, patrimonialistas e individualistas.
FONTES
UTILIZADAS:
(1) SANTOS,
Boaventura de Sousa. As Bifurcações da Ordem: Revolução, Cidade, Campo e
Indignação. São Paulo: Cortez, 2016 (Cap. 7 – “Para uma teoria sociojurídica da
indignação: é possível ocupar o direito?”)
JÚLIA SÊCO PEREIRA GONÇALVES - DIURNO
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