Total de visualizações de página (desde out/2009)

domingo, 1 de julho de 2018

MST: uma luta pelo direito dos 99%


Dentro de um mesmo artigo da Constituição Federal Brasileira existe a defesa tanto do direito da propriedade privada quanto da necessidade da propriedade privada cumprir com sua função social:
Art. 5°. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residente no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos seguintes termos:
XXII – é garantido o direito de propriedade;
XXIII – a propriedade atenderá a sua função social;
Então como ponderar esses direitos? Segundo Boaventura, numa perspectiva do direito configurativo, aplicado ao direito dos 1% (direito como um instrumento de dominação que atua principalmente através da retórica), o art. 5º deveria decidir à favor da propriedade privada, de forma a predominar o paradigma oitocentista do CC/16 em seu aspecto patrimonialista, deixando impune os donos da Fazenda Primavera (mesmo que não cumprindo com a função social, os poderosos acabam por ter impunidade por suas ilegalidades e/ou conseguem alterar mecanismos jurídicos para servirem aos seus interesses privados) e gerar uma punição severa ao MST pela invasão da propriedade. Esse cenário já ocorreu com o julgamento do “Pinheirinho” no qual a propriedade privada prevaleceu.
Entretanto, como assegurou Barroso, o STF possui um caráter representativo, sendo permeável ao sentimento social e a vontade pública, e contra-hegemônico, sobrevalecendo sua vontade sobre a vontade do legislativo que criou uma lei (criada pelo direito dos dominantes). Devido a essas características, a judicialização empregada no julgado da Fazenda Primavera, possibilitou a predominância do coletivo sobre o individual, levando em consideração um conjunto de normas da Constituição (arts. 5º, incs. XXIV a XXX, 170, incs. II e III, 176, 177, 178, 182, 183, 184, 185, 186, 191 e 222) que traçam limites e interferem na propriedade para que essa possa atender à sua função social, levando em conta mais do que um direito individual e sim um dever social. A decisão do juiz passou a ter um caráter de direito prefigurativo, que segundo Boaventura, “expressa, na prática, a antecipação de uma sociedade diferente, baseada num conjunto de relações de poder totalmente distinta”. (1) Em outras palavras, o direito dos 99% representada pelo MST está em iminência de se fixar em direito reconfigurativo, que para esse movimento significaria a luta “por uma sociedade mais justa e fraterna”, a solução dos “graves problemas estruturais do nosso país, como a desigualdade social e de renda, a discriminação de etnia e gênero, a concentração da comunicação, a exploração do trabalhador urbano, etc” e a “realização da Reforma Agrária, democratizando o acesso à terra e produzindo alimentos”. (2)
Para que esse direito reconfigurativo acontecesse, o MST agiu sob a combinação das ações jurídicas e ações políticas. Nas ações políticas ocorreu a realização de ocupações coletivas bem organizadas e estruturadas, marchas, jejuns/greves de fome, vigílias e manifestações públicas, de forma a tanto pressionar os poderes políticos quanto promover a sensibilização da sociedade acerca da reforma agrária (um dos principais objetivos do MST); nas ações judiciais, ocorreu o apelo ao STF tanto pedindo “suspensão da injunção” (visando a permanência das famílias nas áreas ocupadas) – como foi o caso da Fazenda Primavera, alegando a incapacidade do INCRA fiscalizar se a propriedade cumpria sua função social – assim como a utilização da prevalência dos direitos fundamentais humanos (como dignidade da pessoa humana) sobre o direito patrimonial individual atrelado à função social da propriedade e a comprovação do exercício de posse por parte do proprietário; já nas ações não-judiciais, ocorreram investimentos na formação técnica dos advogados populares para a defesa da causa do MST e parcerias com universidades como as NAJUPs e SAJUs, visando proporcionando uma aproximação entre o MST e os operadores do direito, além de aumentar a possibilidade de emprego da retórica (principal instrumento utilizado pelo direito do 1%)  e de forma a influenciar na formação de novos profissionais do direito.
Concluí-se que a partir dessa ponte entre ações políticas e ações jurídicas, o MST estaria, segundo Bourdieu, promovendo a efetivação e legitimação da luta social por meio da estrutura balizante do direito. Para Boaventura, o MST realizou uma mobilização política proativa, por utilizar os tribunais para reivindicações, por pressionar a burocracia estatal e por mobilizar a alterações legislativas visando os interesses desse grupo  (que no caso se tornou alvo do fascismo social criado pelo direito do 1%). Através dessa mobilização e da utilização de um constitucionalismo transformador, o MST pode utilizar o direito como emancipatório, reconfiguranto o direito vigente pelos dominantes, patrimonialistas e individualistas.


FONTES UTILIZADAS:

(1) SANTOS, Boaventura de Sousa. As Bifurcações da Ordem: Revolução, Cidade, Campo e Indignação. São Paulo: Cortez, 2016 (Cap. 7 – “Para uma teoria sociojurídica da indignação: é possível ocupar o direito?”)

JÚLIA SÊCO PEREIRA GONÇALVES - DIURNO

Nenhum comentário:

Postar um comentário